terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Domingo a caça foi farta

Domingo foi um dia extraordinário. Digo mais: domingo foi um dia que parecia não caber em apenas vinte e quatro horas. O que digo? Não foi nem o domingo inteiro. Aqueles noventa minutos no campo da Ilha do Retiro, as quase duas horas entre as cinco da tarde e as sete da noite poderiam preencher o domingo inteiro e ainda seria pouco.

Domingo foi um dia de festa para a torcida rubro-negra! Conquistamos ao mesmo tempo a permanência na Série A, a artilharia do campeonato brasileiro e a última vaga da Sulamericana. Parece muito para um jogo somente; mas não é à toa que o Leão é o rei dos gramados. A fera ao final não decepciona -- e com a força de suas garras sempre consegue providenciar uma caça farta e saborosa.

Foto: Globo Esporte
Primeiro, a Série A! Ela é nossa. É nossa porque compete ao Leão permanecer, altivo e majestoso, na elite do futebol brasileiro, fazendo a glória de Pernambuco e exaltando o sagrado manto rubro-negro. Houve quem temesse uma recuperação súbita do Inter. Mais: houve quem apostasse nisso. Dizem as más línguas que houve até quem pagasse para tanto... mas as torcidas, as apostas e mesmo os negócios escusos não lograram manter o Colorado na primeira divisão.

Eles se esforçaram. Primeiro, o Fluminense deu férias para mais da metade do elenco. Entrou em campo praticamente com a equipe dos juniores, com um time totalmente improvisado. Houve jogadores que nunca haviam passado tanto tempo dentro de campo -- nem mesmo no treinamento! Depois, o Fluminense perdeu um pênalti. De propósito. Bateu em cima do goleiro. Não fosse o bastante, na etapa complementar o time carioca substituiu o goleiro. O time de juniores do Fluminense, cujos atacantes perdiam pênaltis de propósito, passava a guarnecer as suas traves com o goleiro reserva! Era demais. Nunca se viu um arrumado tão grotesco; no entanto, nem mesmo assim a terceira força do Rio Grande do Sul conseguiu se segurar de pé. Não arrancou senão um vexatório empate no Rio de Janeiro -- é a prova cabal de que um barracão não se transforma jamais em palácio, ainda que seja coberto com os mais ricos tapetes que o dinheiro pode comprar.

Mas nem adiantaria. Aqui, na Ilha do Retiro, o Leão foi à desforra. Lançou-se sobre o Figueirense com a ferocidade de um caçador experiente: Florianópolis estremecia a cada vez que o ataque do Sport desbaratava a defesa do time visitante. Foram dois gols precisos, milimétricos, exatos: Rogério e Diego Souza liquidaram a partida. Com o gol, o meia rubro-negro alcançou a admirável marca de catorze gols na competição: não houve no Brasil inteiro ninguém que marcasse mais do que ele! E como se não bastasse, como se fosse preciso fechar o campeonato com chave de ouro, a surpresa ainda veio de graça, numa bandeja de prata, como um leitão assado de maçã na boca e tudo: o Coxa e o Vitória, perdendo, abriram espaço para que o Sport subisse na tabela até a décima-quarta posição, garantindo a sua vaga na Copa Sulamericana do próximo ano. Sim, senhoras e senhores, a vitória foi brutal: domingo não sobrou pedra sobre pedra.

Domingo a vitória foi completa. Caídos no chão, deitados em posição fetal, chorando como bezerros desmamados, estavam o Inter, o Figueira, o Coxa e o Vitória: sobre todos eles, de pé, altivo e majestoso, o Leão contemplava o estrago feito -- e o seu rugido vitorioso se fez ouvir pelos quatro cantos do Brasil.

Domingo o uniforme rubro-negro brilhou e mais: parecia que cada um dos torcedores do Sport refletia, no fim de semana, um pouco da glória do Leão da Ilha do Retiro. Foram dois gols e, de repente, dezoito milhões de rubro-negros experimentaram uma alegria como não tiveram o campeonato inteiro. Foi uma cena linda de se ver: o Leão vitorioso, com os adversários prostrados sob as suas patas poderosas e, ao redor dele, dezoito milhões de uniformes rubro-negros que chegavam a resplandecer na escuridão recifense.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

O luto verde que é devido aos meninos de Chapecó

As tragédias, como as alegrias, unem os homens. Dada a nossa triste condição, as primeiras costumam unir mais do que as últimas. É que a felicidade parece diminuir quando é compartilhada; a dor, não, a dor consome e se expande, e tanto mais cresce quanto por mais pessoas estende os seus dedos macabros. Nunca a alegria de uma conquista é tão contagiante quanto a dor de uma tragédia: é a nossa maldição. O sofrimento de perder o emprego costuma ser maior do que a alegria de ter sido contratado, e as lágrimas por um relacionamento rompido geralmente são mais abundantes do que o foram os sorrisos pela descoberta do amor verdadeiro.

Hoje esta maldição nos atinge e nos envergonha de um modo particularmente duro. Todos sabem da trágica queda do avião que levava o time da Chapecoense para a Colômbia, onde ia disputar a final da Copa Sul-Americana: amanhecemos com essas manchetes. E de repente todo o país se cobriu de luto -- um luto muito maior e muito mais generalizado do que a alegria que sentíamos pela final que os nossos conterrâneos heroicamente iam disputar. E de repente nos assustamos com a dimensão daquilo que perdemos sem perceber. E não mais que de repente, como no soneto, o nosso riso escasso transformou-se em farto pranto.

Foto: Folhapress

De repente uma tragédia, uma falha elétrica, uma pane, uma queda...! O time da Chapecoense estava no seu auge: saíra da série D do Campeonato Brasileiro em 2009 para a série A em 2014. Em 2016 chegara à final da Sul-Americana. É uma trajetória notável à qual poucos times terão podido fazer frente -- e o atleta assim abatido em seu apogeu provoca um sentimento estranho em quem acompanhava, deslumbrado, os seus passos. Ficamos nos perguntando até onde ele poderia ter chegado; e, pedindo licença ao poeta, sentimos uma falta enorme, desassombrada, da vida inteira que podia ter sido e não foi. Sim, tragédias assim nos fazem questionar se Neil Young estava certo e se é mesmo melhor queimar de uma vez do que apagar-se aos poucos. 

As tragédias unem os homens; as grandes tragédias, unem-nos por sobre os clubes de futebol. Hoje não somos senão brasileiros chocados com o acidente, perplexos com a catástrofe, emudecidos diante dos caprichos brutais e intransigentes do destino. Poderia ter sido conosco e de uma certa maneira foi: de um certo modo aqueles jogadores, jovens e deslumbrados com a vida, levaram consigo um pedaço da nossa própria alegria e do nosso fascínio esportivo. Todo mundo, independente da camisa que vista, está percebendo isso: é como se por debaixo dos uniformes estivéssemos descobrindo, com toda a clareza que a dor provoca, o pulsar de um coração igual ao daqueles jovens que não puderam chegar ao Atanasio Girardot. Nós também não chegamos; a nós, que ainda vivemos, cabe derramar as lágrimas que eles não podem mais derramar.

Hoje as arquibancadas estão silenciosas e o gramado dos nossos estádios se veste do luto verde que é devido aos meninos de Chapecó. Chegaram longe e nos encheram de orgulho, e são dignos de nosso reconhecimento, nossos pêsames e nossas orações. Hoje é preciso abrir uma exceção e o sagrado manto rubro-negro cede o seu lugar ao uniforme monocromático da Chape: é ele que deve tremeluzir mais alto, repleto de honras, fulgente de glória. Hoje Pernambuco expressa as suas condolências aos irmãos de Santa Catarina, e o Leão da Ilha abaixa a cabeça em muda saudação ao Verdão do Oeste que parte.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O toque de Midas

Midas foi aquele rei da antiguidade que, ganancioso, ávido por riquezas, conseguiu dos deuses, certa vez, o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse. A graça viu-se transformada rapidamente em maldição: Midas não podia comer, não podia beber, não podia abraçar a sua família sem que a comida, a bebida ou a filha se transformassem em ouro ao toque de suas mãos. Cercado de estátuas de ouro maciço, o velho rei sofria cada vez mais sozinho.

Há uma espécie de toque de Midas no futebol brasileiro. O Leão, que também é Rei e cuja juba é dourada, detém esse dom extraordinário: consegue transmutar qualquer pelada em uma batalha encarniçada, transforma qualquer passeio em uma Odisséia.

Diante do América foi o que foi. O time já estava rebaixado, era o lanterna do Brasileirão; o jogo não valia rigorosamente nada. Ou por outra: a vitória faria com que o Sport estivesse matematicamente livre do rebaixamento. Era um jogo tranquilo. Não era possível se complicar.

Mas eis que a pata dourada do Leão pisa em campo, eis tudo transmutado. A pelada transformou-se rapidamente em uma batalha cruel e assassina, eu não diria de dois campeões europeus porque o futebol europeu não está à altura dessa dramaticidade tão própria nossa, mas de dois finalistas de futebol de várzea. Sim, senhoras e senhores, aquele jogo contra o América adquiriu magicamente todos os contornos de uma revolução que desde a Inconfidência Minas não via tão sangrenta!

Foto: Globo Esporte

O Sport abriu o placar e a torcida ficou esperando o segundo gol que não veio. O time da casa empatou. Virou o jogo! Eis a pelada, a partida protocolar, o mero cumprimento de tabela, transformado em um clássico onde só interessava ao Leão vencer. Eis o Glorioso em desvantagem, saindo do acomodamento, precisando lançar-se sobre o adversário com um ânimo que até há pouco tempo atrás ele não tinha. Já dezoito milhões de rubro-negros xingavam o Sport, injustissimamente, com aquela injustiça com que a corte de Frígia talvez censurasse o seu soberano por estragar o repasto para ele preparado pela melhor cozinha da Hélade. Uma e outros, tolos, não eram capazes de admirar o corriqueiro transformado em extraordinário.

O jogo terminou em 2 x 2; disseram que, com o empate, o fantasma do rebaixamento estava se aproximando. Ora, só as crianças e as mulheres têm medo de fantasmas! O Glorioso ri-lhes em face. O manto rubro-negro não teme os seres malditos, ao contrário: senta-se tranquilo e sereno em meio aos terrenos baldios mal-assombrados, bastando um seu rugido para desvanecer os espectros da noite. É compreensível que os times medíocres fiquem com medo do azarão das tabelas ou tenham vertigens na beira do abismo. O Sport não. As suas garras estão preparadas para destroçar os azarões e, da beira do abismo, do alto do desfiladeiro, o rugido do Leão ecoa mais majestoso.

Qual toureiro que atrai a fera selvagem a si, qual atleta que desafia os limites da natureza, este é o Sport: nada nele é medíocre, nenhum jogo é protocolar. De repente, no penúltimo jogo do campeonato, o Internacional se aproxima; graças ao toque de Midas, o que poderia ser um jogo sem importância transformou-se na partida capaz de fazer com que o Sport fique na elite do futebol ou desça para a divisão do Náutico e do Santa Cruz. Quem poderia esperar algo tão emocionante?

Domingo, na última rodada do Brasileirão, o Sport jogará com toda a dedicação de um tudo ou nada. Se o Inter vencer poderá ultrapassar o Sport; era cavalheiresco conceder aos gaúchos essa gentileza, dar-lhes pelo menos essa chance, não lhes tirar a esperança até o último momento. O Colorado se aproxima furioso; domingo será o dia do Olé. Domingo, em Recife, a velha Figueira será derrubada, virará lenha na Ilha do Retiro. Lenha para o fogo! Sim, senhoras e senhoras, domingo será o dia em que dezoito milhões de rubro-negros vão se fartar de comer churrasco gaúcho.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Com muita sede ao pote

É a monotonia que nos leva longe; as caminhadas, mesmo as mais longas, são vencidas passo a passo, e os obstáculos mais difíceis são alcançados à custa da tenacidade e da paciência. Os judeus levaram quarenta anos para cruzar um deserto que, alguém poderá dizer, talvez pudessem ter cruzado em quatro; mas o afobamento talvez lhes custasse uma energia que não haveria como repor. Os desertos, é o que quero dizer, têm o seu tempo para serem atravessados: neles a pressa ou a apatia podem ser fatais.

O Sport, todos o sabemos, é dado a arroubos de grandeza. É um Leão majestoso e todo majestade tem os seus caprichos: é um defeito de todo rei, aliás, satisfazer as próprias vontades quando lhe dá na telha. Inclusive assim se perderam muitos povos e muitos reinos: foi por não querer esperar a viuvez que Henrique VIII rompeu com a Igreja; e, séculos antes, em Poitiers, um ataque açodado de João II tornou o rei de França cativo de um exército inglês numericamente muito inferior. A Guerra dos Cem Anos haveria que se consumir lentamente ao longo de todo o seu século: qualquer tentativa de lhe pôr fim antes do tempo só poderia ser catastrófica.

A espera melancólica é o segredo das vitórias ou, pelo menos, das vitórias colecionadas em sucessão. A sabedoria popular manda não ir com muita sede ao pode, e o adágio tem uma metonímia que não pode passar despercebida: não é sede e sim sofreguidão. Afinal ninguém tem controle sobre a sede que sente: o que pode fazer é, no máximo, decidir de que maneira vai se comportar uma vez que está morto de sede.



E o Leão estava sedento ontem -- também pudera. Lutava contra o fantasma do rebaixamento e recém saíra de uma vitória clamorosa. Em Porto Alegre massacrara o tricolor gremista, enfiando-lhe três gols cujos gritos ainda hoje assombram os gaúchos. Respirara fundo, mas a missão não estava ainda concluída. Havia o que fazer, e o time queria fazer depressa. Foi, no entanto, traído pela tabela.

O campeonato espaçou demasiadamente os dois jogos do Leão: goleou na segunda-feira e só foi chamado a entrar em campo novamente na quarta-feira da semana seguinte, dez dias depois. Todo um final de semana se passou em branco, sem que o Glorioso se apresentasse; são tristes e melancólicos esses fins de semana onde o sagrado manto rubro-negro é impedido de brilhar! O Leão, com gosto de sangue na boca, com os pedaços do uniforme gremista ainda presos nos dentes e nas garras, precisou esperar -- e Deus sabe como isso é difícil às feras selvagens, aos reis gloriosos! Mas o campeonato brasileiro é como a Guerra dos Cem Anos: impõe reveses aos que não sabem suportar o melancólico e lento escoar dos seus prazos e dos seus tempos.

Ontem o Leão entrou em campo já esbaforido: dir-se-ia em frenesi a fera, em verdadeira crise de abstinência, precisando desesperadamente marcar os gols que, após a goleada em Porto Alegre, por dez longos dias fora proibida de marcar. Sofreu o pênalti e foi a sua desgraça, porque se afobou e se precipitou, e dezoito milhões de rubro-negros chegaram até a gritar "gol!" em pensamento. Mas o time se lançou com muita sede ao pote: e naquela cobrança de Diego Souza o pote quebrou, e a água fresca derramou-se e se perdeu no gramado da Ilha do Retiro. Sim, forçado a esperar muito, preso e agrilhoado por dias a fio, o Glorioso, uma vez solto, foi com muito afã ao campo -- e por conta disso dezoito milhões de rubro-negros voltaram pra casa com sede naquela noite.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Leão destroçador de tricolores

É um dia especial para o Glorioso essa segunda feira, em que o Sport vai enfrentar o Grêmio na casa do adversário. Trata-se de uma partida importante porque, com ela, o time rubro-negro tem a chance de se afastar definitivamente do temível Z4 -- a zona de rebaixamento, ameaçadora, escarnecedora, abre sua goela apenas dois pontos abaixo do Glorioso.

Não será hoje que o Z4 vai comer carne nobre de Leão. O time tem a chance de fazer valer a sua vocação campeã, de elevar bem alto, resplandecente, o sagrado manto rubro-negro. Afinal de contas, vem de uma boa seqüência; batemos a Macaca aqui na Ilha do Retiro, em uma partida com tanto sabor de goleada quanto mirrado foi o placar. Ao passo em que o velho Grêmio não ganha há três jogos consecutivos, e joga apenas para cumprir tabela, sem esperar maiores resultados da vitória ou piores consequências da derrota.

Foto: O Sul

Porque são os piores momentos que distinguem os medíocres dos campeões natos. O Grêmio nada tem a ganhar nem a perder; o Sport pode se complicar na competição ou pode praticamente dar adeus ao fantasma do rebaixamento. É todo um nome tradicional a defender, toda uma história de glória à altura da qual o time tem o dever de agora estar: sim, porque aqueles jogadores não vão entrar em campo somente em seu próprio nome. São cento e onze anos de tradição que carregam no peito, são dezoito milhões de rubro-negros que esta noite eles levam nas costas.

O Sport vai jogar como um campeão. Por debaixo de cada camisa vai pulsar o coração de dezoito milhões de rubro-negros; em cada chuteira estarão as esperanças de uma multidão de torcedores. Porque ao Sport não interessa somente a apresentação protocolar, não vai à Arena do Grêmio apenas para cumprir tabela: o Leão, que é o rei dos gramados, vai para impor a sua majestade sobre o Tricolor dos Pampas.

Que importa que pese um tabu contra o Sport? Que importa que o tricolor ostente, na Arena, a sua invencibilidade contra o Leão da Ilha? Toda invencibilidade mais cedo ou mais tarde cai por terra; sim, senhoras e senhores, hoje é um bom dia para quebrar tabus. Já estou vendo o Leão entrando no campo esta noite, altivo e temível, destroçador de tricolores: à sua mera visão imponente o time da casa vacilará, lembrando da goleada do último confronto.

E o Leão despedaçará invencibilidades com a força de suas garras, e nas suas presas serão esmagados tabus como se fossem gravetos secos.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Precisamos falar sobre voleibol

As coisas são curiosas. O futebol é um esporte cuja etimologia vem do inglês football, e "foot" quer dizer "pé". Correndo o risco de incorrer em um truísmo, é preciso dizer que futebol se joga com os pés. E, insistindo nas platitudes, parece necessário dizer ainda que, em um lance de futebol, meter a mão na bola caracteriza uma infração, foul, uma falta. Encerrando as trivialidades, uma outra informação importante: quando a falta é realizada dentro da própria área, durante uma jogada de ataque do time adversário, isso no geral acarreta um penalty, pênalti.

São regras básicas do futebol com cuja enumeração aqui corro o risco de entediar os meus leitores. Essa revisão meio pré-escolar, no entanto, parece necessária diante de um lance ocorrido ontem na Arena Palmeiras. O jogo entre Sport e Palmeiras estava ainda em 0 x 0. Eram os meados do primeiro tempo quando o Leão avançou. Com perigo, com determinação, senhor de si como vinha fazendo em todo o jogo. Porque esta é a verdade: neste último domingo, à tarde, o elenco rubro-negro estava -- enfim -- mostrando um futebol compatível com o sagrado manto leonino. Diante do líder do Brasileirão, o Sport estava jogando com verdadeira majestade. Mas voltemos ao primeiro tempo. Escanteio para o Sport: um escanteio épico, milimétrico, fatal, um verdadeiro escanteio de capa-de-revista. No meio da trajetória, no entanto, a bola é interceptada: Yerry Mina mete a mão nela e corta, assim, o ataque do Sport. Dezoito milhões de rubro-negros se levantaram para protestar. O juiz não viu ou por outra, fez que não viu; ou pior, viu, mostrou que viu e mandou o jogo seguir. O Palmeiras contra-atacou sobre as reclamações do elenco do Sport; e diante de um time perplexo furou a rede de Magrão.



Coloquemos as coisas em seus devidos lugares. "Meter a mão" não é aqui mera figura de linguagem: o jogador palmeirense levantou completamente o braço, mão esticada, como se fizesse um Heil Hitler macabro, como se fosse um líbero do voleibol entrando no fundo do campo apenas para interceptar a bola rubro-negra.

Há algumas coisas que acontecem dentro das quatro linhas que não são muito comentadas; é como se fosse um submundo do futebol, um lado sombrio que todo mundo conhece mas sobre o qual há um acordo tácito de silêncio. Bem, é preciso quebrar esse tabu. Precisamos falar sobre voleibol.

Malgrado o que diga certa ideologia de gênero esportivo, o jogador não é livre para ser o que ele quiser. Ele não pode ser um centroavante na hora de cobrar o pênalti, um judoca quando for derrubar o atacante adversário e um jogador de voleibol na hora de interceptar o cruzamento. Cada esporte tem as suas regras próprias e suas características naturais. Os que julgam essas exigências muito limitadoras dizem que elas não passam de uma convenção social; bem, se aprouve à sociedade convencionar assim, então é assim que os atletas se devem portar, ao menos dentro das instituições sociais oficiais de cada esporte. No caso do campeonato brasileiro, falamos da CBF. O futebol tradicional pode até ser hipócrita; isso, no entanto, não torna menos injusto que um jogador do Palmeiras meta a mão na bola, dentro da área, para impedir uma jogada perigosa do Sport.

Foto: Torcedores

Há quem diga que o futevôlei já existe há muito tempo. Bom, primeiramente, futevôlei não é bem futebol jogado com as mãos (este é mais o handebol), senão vôlei com os pés: o objetivo dele é impedir a bola de cair no chão, e não desviar a trajetória da bola metendo-lhe a mão -- mas isso é uma tecnicidade. Segundamente, futevôlei é futevôlei e futebol é futebol; ora, a quem interessa obscurecer as diferenças entre os dois esportes senão aos maus jogadores de um e de outro lado? O futebol será cada vez menos futebol, e o voleibol, cada vez menos voleibol, e o futevôlei, cada vez menos futevôlei, se as regras de um puderem ser indistintamente aplicadas a todos os outros. Quem defende o fim das regras no fundo não gosta de vôlei, de futebol, de basquete, de esporte nenhum. Fazer com que os esportes não tenham regras próprias é acabar com os esportes. Só um perna-de-pau não vê isso.

Para concluir aqui: sempre houve comportamento desviante no futebol, é óbvio. Mas era motivo de vergonha e não de orgulho. Sempre existiu aquele lateral com tendências de lutador de MMA, aquele zagueiro com jeitinho de jogador de vôlei. Não dá para o evitar. Permitir que isso aconteça, no entanto, na cara dura, sob as barbas do juiz, filmado e televisionado, transformado em GIF e em meme, aí já é demais. O zagueiro do Palmeiras metendo a mão na bola, dentro da área, em rede nacional, é mais do que um atleta inconformado dando vazão às suas tendências esportivas íntimas que sempre foram reprimidas sob a opressão de árbitros rígidos e moralistas. Não. Mina, de cabeça e braço erguidos, metendo despudoradamente a mão na bola diante do mundo, é o arauto da desmoralização do futebol, o profeta inconsequente do seu fim. O orgulho do zagueiro alviverde é a vergonha do futebol tradicional.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O Leão de verdade, o verdadeiro rubro-negro

Um a zero pode parecer um placar monótono à primeira vista; às vezes, no entanto, é prudente olhar melhor. Grandes perfumes podem estar contidos em pequenos frascos, e grandes vitórias por vezes podem se esconder em placares apertados. 

Foto: Blog do Torcedor

Quem examinar com mais atenção o Sport x Vitória de ontem à noite pode se surpreender com o que vai descobrir. Em uma palavra, o Sport jogou com raça porque só lhe interessava a vitória. Pouco antes o Flamengo perdera do Internacional; o velho Urubu, arremedo de rubro-negro, não conseguiu segurar nem mesmo o Colorado que passou praticamente o campeonato inteiro na sarjeta. Pior: perdeu de virada. O Internacional deu, neste jogo, a demonstração de coragem e valentia que não dera no campeonato inteiro. Se é coisa estranha um vice-líder perder para um time do Z4, ainda pior é perder após ter estado ganhando. E pior, mil vezes pior, é sofrer uma derrota assim, bruta e avassaladora, humilhante e embaraçosa, enquanto ostentava em campo o uniforme vermelho e preto que o Sport, com seu uso, glorificou e tornou sagrado. O Flamengo emporcalhou a camisa rubro-negra; cumpria então ao Leão da Ilha salvar-lhe a honra.

E assim o fez. Sim, o motivo da vitória do Sport -- da vitória colossal e retumbante que o fez saltar três posições na tabela -- não esteve tanto na imperiosa necessidade de vencer, uma vez que a derrota o lançaria em uma humilhante décima-sétima posição. Não esteve tanto no clamor da torcida, que com generosidade, com ânimo, com paixão, compareceu em peso à Ilha do Retiro para empurrar o time pra frente. Não esteve tampouco no empenho de Daniel Paulista, cuja estréia não lhe poderia ser mais favorável. Nada disso. O verdadeiro motivo da vitória do Glorioso, senhoras e senhores, foi este: o sagrado manto rubro-negro havia sido ultrajado pela pelada que jogou o Flamengo, e oferecer-lhe um desagravo era questão básica de justiça. A coisa pedia, exigia, clamava uma satisfação. 

E não importava, naquele momento, nada. Não interessava desapontar ou alegrar a torcida; não fazia diferença o técnico começar com o pé direito ou com o pé esquerdo. Não importava nem mesmo a posição que o Sport passaria a ocupar na tabela do campeonato. A única coisa que importava, naquele momento tenebroso, naquele jogo fatídico, era reparar a ofensa que o urubu carioca recém fizera ao uniforme rubro-negro. O Flamengo arrastara na lama o vermelho e o preto; o Sport precisava, assim, fazê-lo tremeluzir, imponente, rútilo, nas alturas.

E o fez com maestria e classe, contando tanto com a habilidade dos seus jogadores quanto com a cumplicidade dos seres cósmicos. Porque não bastou Diego Souza fazer um golaço logo no início do jogo; foi também necessário fechar o gol rubro-negro, impiedosamente alvejado por não apenas um, mas dois pênaltis seguidos. Marcados com menos de cinco minutos de distância entre um e outro. Nunca se viram duas penalidades máximas favoráveis ao mesmo time tão próximas entre si. Mas mais que isso: nunca se viu um gol permanecer tão incólume, tão impávido e inexpugnável, tão íntegro, tão fechado, após o duplo assalto de dois pênaltis consecutivos.

Zé Love bateu o primeiro pênalti sem contar com Magrão. Não é um simples goleiro, é uma virtuose de deixar boquiabertos os que se encontram diante dele. O pênalti foi batido com categoria, com habilidade, com precisão; muito mais preciso, no entanto, muito mais habilidoso e categórico foi o goleiro do Sport, que mergulhou para preservar a rede rubro-negra de uma forma que ninguém acreditou que pudesse ser possível. O segundo pênalti ficou sob a responsabilidade de Kieza; contra este levantaram-se até mesmo as próprias estruturas da Ilha do Retiro, como se o campo mesmo tomasse sobre si o encargo de manter inviolado o gol rubro-negro. A trave impediu a bola de Kieza de entrar; e se acaso a trave falhasse, já Magrão estava lá, voando em direção à bola, preparado para não a deixar passar nem mesmo sobre o seu cadáver monumental. Nem a primeira bola nem a segunda entrou, e dali até o fim do jogo nenhuma outra teve sequer esperanças de lograr êxito onde dois chutes tão avantajados sofreram tão fragoroso fracasso. 

E a vitória assim se impôs. O Sport vitorioso sobre o Vitória, cujo nome não lhe serviu naquela noite. Apenas um Leão é o verdadeiro rei, e o Glorioso soube fazer valer a sua majestade sobre o falso rei baiano. E principalmente, principalmente!, o uniforme rubro-negro foi honrado, glorificado, tratado com o respeito que merece. Vencendo o Vitória, o Sport mostrou ser o Leão de verdade; vingando a derrota do Flamengo, provou ser o verdadeiro rubro-negro. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Um esporte de equipe

O futebol é um esporte de equipe. Não se fala aqui, porém, apenas do time formado pelos onze jogadores em campo; a equipe é muito mais ampla e inclui outras figuras, outros personagens, uns mais evidentes, outros mais ocultos, todos, porém, que cooperam, implícita ou explicitamente, para o resultado final. São vários os atores que, em união, em harmonia, em sincronia, cooperam para que o time jogue bem ou jogue mal, ganhe ou perca, honre o manto do clube ou o envergonhe.

Há sem dúvidas o elenco, que é quem joga os jogos, quem entra no campo para trabalhar a bola. Mas há também a equipe técnica, que prepara o elenco, que o mantém em forma, capacitado para as lides esportivas -- em última análise, para fazer gols e não os levar. Há a torcida, que empurra o time para frente, que lhe dá o ânimo necessário para completar o que falta à habilidade com a bola: todo mundo sabe que o futebol exige mais do que a simples capacidade técnica, a pura habilidade física dos craques. O futebol não é e nem nunca foi função direta do nível dos jogadores, e é isso que o torna tão fascinante. O futebol é como a vida: às vezes fazemos tudo certo e as coisas dão errado, ao passo em que às vezes, mesmo no auge do nosso desleixo, parece que o Universo conspira por nós e as coisas acontecem em nosso favor.

E há, claro, além de tudo isso, a moral do time, a sua história, o seu simbolismo. E no caso do Sport esse aspecto adquire o primor de uma obra de arte. É o respeito obsequioso que a mera menção ao seu nome evoca. É o frio na barriga e o temor que o adversário sente ao vê-lo entrar em campo. É o pânico provocado pelo grito de guerra da torcida. É, em suma, a própria força, aliás, bruta e sobre-humana, que exala do uniforme rubro-negro, de um padrão ao qual já se impregnaram o suor e o sangue, a adrenalina e a testosterona de tantos jogadores que, ao longo dos anos, degrau a degrau, conduziram o Glorioso aos patamares elevados do alto dos quais ele hoje pode olhar para seus adversários de cima pra baixo. Sim, a camisa rubro-negra é por si só um talismã: ela é envolta dessa aura mágica que resplandece em torno aos heróis nos quadros de cavalaria.

Se o nome do time não falta e não pode nunca faltar, o que explica os maus resultados do Sport? São vários os personagens, eu dizia, que cooperam para o resultado das partidas: e para que a vantagem conferida pelo sagrado manto rubro-negro não seja eficaz os outros atores precisam fazer um esforço muito grande para conseguir sabotar o time. 

Primeiro o elenco. Não o digo tanto desestimulado, porque estímulo maior não há do que a honra de envergar em campo as cores do Leão; mas despreparado, sim, uma vez que, ao que parece, os jogadores não estão aptos a realizar os feitos de que o time hoje precisa. A camisa não joga sozinha; verdade seja dita, parece até que ela tem feito isso nos últimos jogos, mas até para o mítico padrão rubro-negro há limites. Os jogadores também precisam ajudar um pouco.

Depois o técnico. Ele não se entende com a torcida e nem com o time; essa semana mesmo noticiou-se a sua saída, aparentemente para treinar algum time paulista. Ora, como pode o treinador dedicar-se ao time daqui se já se prepara para assumir o time de lá? E até outra: se ele não dá conta de preparar o time que já conhece, com o qual já trabalha, o que leva a crer que será capaz de pôr em forma o que só vai conhecer agora? Sem uma liderança firme até os melhores acumulam malogros. Até Tróia caiu pela fraqueza de Príamos, a despeito da solidez inexpugnável de suas muralhas.



E há por fim a torcida -- será que há? Onde está a torcida? Onde estão os dezoito milhões de rubro-negros? Onde está a força dos torcedores, historicamente responsáveis por carregar o time contra todas as adversidades, tradicionalmente capazes de empurrar o elenco para as vitórias mais difíceis? Porque os campos têm se mostrado verdadeiros desertos. Vez por outra uma grande bola de feno é vista, melancolicamente, rolando pelas arquibancadas. São mil torcedores, dois mil gatos pingados -- o que é isso? Como é possível que o time jogue se ninguém o vê jogar? Como é possível que o time faça uma boa apresentação se não há espectadores para os quais apresentar?

O futebol é um esporte de equipe e cada um tem que fazer a sua parte. Os jogadores têm que jogar melhor do que vêm jogado até agora; a equipe técnica tem que treinar os jogadores com mais qualidade do que tem feito até então; e a torcida precisa torcer melhor do que vem torcido. Basta isso. Porque a camisa, senhoras e senhores, o sagrado manto rubro-negro, é o único que já vem fazendo tudo o que precisa. É quase como se fosse ele a carregar sozinho o time nas costas. O vermelho e o preto do uniforme já estão fazendo a sua parte: e, em todo jogo, antes de qualquer má apresentação, o padrão rubro-negro, sozinho, já reveste os jogadores do Sport de uma aura de campeões.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O valor do placar final

Será o futebol um esporte de resultados ou de apresentação? Valerá mais a busca fria, mecânica, matemática e férrea do placar final ou, antes, deverá um grande time de futebol esforçar-se por fazer bonito, por encher os olhos dos espectadores, por assenhorear-se do campo e portar-se, nele, como se estivesse na própria casa?

Ora, o resultado é sem dúvidas importante. É o resultado que conta pontos na tabela, que abre ao time o acesso aos estágios mais avançados das competições, é o placar final, em suma, que determina praticamente tudo. Mas não se pode cair na tentação fácil de imaginar que o resultado deva ser buscado a qualquer preço, ao sacrifício da beleza e do espetáculo. É preciso ganhar sim, mas é preciso também ganhar bonito. E vou até mais além: há certas situações em que mais vale preocupar-se com a beleza do jogo do que com a vitória. Afinal de contas é futebol, e não Olimpíadas de Matemática.

Veja-se o Sport, ou melhor, vejam-se dois jogos recentes do Sport. O primeiro deles contra o Coritiba, na Ilha do Retiro. O Coxa abriu o placar ainda no primeiro tempo, em um lance de sorte, em uma jogada nojenta. Abriu o placar e, naquele gol mal feito, julgou já ter cumprido as suas obrigações futebolísticas. O que se viu na etapa complementar, então, foi um espetáculo patético. O time visitante fechou-se como uma seita. Pareciam haver não vinte, mas duzentos jogadores na retranca do Coritiba. Um observador desavisado poderia sair com a impressão de que havia mais camisas do Coxa na área de defesa do que nas arquibancadas do estádio, e sua impressão não estaria muito longe da verdade.

O Coritiba saiu com a vitória -- mas a que preço? O de ter dado aquele espetáculo maçante no segundo tempo? O de ter praticamente impedido o jogo com seus chutes para longe, seus toques de lado, suas bolas recuadas? Muitos espectadores que sofriam de insônia devem àquela partida uma melhora súbita na sua condição: o jogo estava tão monótono que os torcedores adormeciam nas arquibancadas. Um deles quase chegou a cair. Foi uma coisa verdadeiramente lamentável; se os campeonatos fossem mais organizados, um time responsável por esta atitude antidesportiva corria o risco de ser sumariamente eliminado da competição. Afinal, recusar-se a jogar é também uma forma de não querer competir.

Veja-se, agora, o extremo contrário. O Glorioso jogou anteontem contra o Fluminense. Abriu o placar logo no início do jogo, aos dez minutos do primeiro tempo. Um time pequeno teria aproveitado a oportunidade para se retrancar completamente; um elenco que não tivesse amor próprio poderia ter, naquele mesmo momento, recuado trinta e três jogadores e transformado a área rubro-negra em uma feira intransitável, em um congestionamento de pernas e corpos onde não se anda e muito menos se joga.

Foto: Blog do torcedor

Mas o Sport tem um nome a defender e uma reputação a zelar. O Sport fez um gol e não recuou; ao contrário, lançou-se para cima do Fluminense com uma ferocidade raras vezes vista. Nem parecia que o time carioca tinha mando de campo: o Leão estava tão senhor de si como se estivesse em plena floresta -- e os tricolores, desbaratados, olhavam de um lado para o outro sem conseguir acompanhar os movimentos mortíferos do Leão. Aquilo foi um verdadeiro passeio. Com uma segurança de campeão, os passes milimétricos, o contra-ataque fulminante, os chutes precisos: a verdade é que o Fluminense praticamente não jogou naquele primeiro tempo. Foi só sufoco e olé: o Leão, majestoso, encarava o adversário de alto a baixo, impondo o terror e reinando absoluto.

Que importa que no segundo tempo o time da casa tenha conseguido reagir? Deveria porventura o Leão ter agido como o velho Coxa e, após o primeiro gol, ter se fechado na retranca absoluta? O Coritiba pode ter ganho fora de casa; mas só o Glorioso ousou jogar no campo adversário, jogar com desenvoltura e ousadia, jogar o futebol que apenas os grandes times são capazes de jogar. Um time ganhou sem jogar; o outro, jogou sem ganhar. A situação do Glorioso é bem melhor. Por não ter sacrificado a própria honra, a tabela do campeonato haverá de reconhecer o valor do Sport -- e haverá de lhe recompensar à altura.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O monumento da vitória

Há três tipos de vitórias particularmente notáveis. Há, primeiro, a vitória que caracteriza uma auto-superação; depois, há a vitória contra um adversário mais forte. Há, por fim, a vitória que vem no momento certo, a vitória oportuna, tempestiva, salvadora; a vitória, em suma, que é um marco na campanha.

Tudo isso esteve presente no triunfo alcançado pelo Glorioso no último sábado. Digo alcançado e poderia dizer mais: arrancado, extraído, garimpado com garra e determinação pelo time rubro-negro na Ilha do Retiro. O Sport foi vitorioso e até mais: triplamente vitorioso.

Sim, senhoras e senhores, há vitórias que são verdadeiros monumentos. Veja-se, antes do mais, o quesito superação. O Sport vinha de duas derrotas e ainda -- duas derrotas pífias, vergonhosas. Perdera do Atlético Mineiro. Há quem diga que se deve aceitar uma derrota sofrida para um time do G4; eu, ao contrário, digo que é ultrajante não termos conseguido marcar um único gol, um mísero e solitário gol sequer, contra o Galo que depenámos tão tranquilamente na primeira fase da competição. Naquele mês de junho foram quatro gols enfiados no time mineiro -- tivéssemos uma defesa decente e a festa seria completa. Agora em setembro, contudo, o Leão não conseguiu furar a rede mineira uma única vez.

Não se pode subestimar o peso de uma má fase. Não foi só do Atlético que o Sport perdeu; também do Coritiba, e na própria Ilha do Retiro, o Sport levou 1 x 0. A torcida já estava depressiva. Ou, por outra, a torcida já havia passado da fase da depressão e já estava violenta, revoltada, hidrófoba. Queria pendurar as chuteiras dos craques do elenco. Queria a cabeça do técnico em uma bandeja de prata. A torcida sabe ser caprichosa e mais: é muito difícil o time jogar sem o apoio dos seus torcedores.

Mas no sábado o Sport venceu; bateu-se contra a má fase, sacudiu o azar de sobre os ombros majestosos e até, em um certo sentido, reconciliou-se com a torcida. Porque não se tratou apenas de superar-se a si próprio, mas de enfrentar e vencer um gigante. O Santos não é apenas o quarto lugar do campeonato; é o segundo melhor ataque de toda a competição. O Santos tem dois jogadores disputando a artilharia do campeonato, cada um com dez gols. Não é um time, é uma máquina de vazar redes.

Foto: Globo Esporte

A máquina exterminadora santista, no entanto, bateu no peito inflado do Leão da Ilha e quebrou. Por incontáveis vezes -- dez? vinte? -- o ataque do Santos tentou transpôr a defesa rubro-negra; em cada uma delas fracassou de maneira retumbante. Aqui um zagueiro desarmando como se reagisse a um assalto; ali um lateral cortando um passe como se afastasse um animal peçonhento da própria casa; acolá o goleiro defendendo um chute como se o gol rubro-negro fosse um templo sagrado e, Magrão, uma vestal encarregada de mantê-lo puro e imaculado mesmo às custas da própria vida. Sim, senhoras e senhores, o maquinário da Vila Belmiro chegou na Ilha e encalhou, lançou-se contra o Sport e foi despedaçado. Dir-se-ia que o Universo conspirava em favor do Leão: quando, no primeiro tempo, a bola passou por Magrão, a própria trave tomou sobre si o encargo de manter fechado o gol leonino e se esticou para afastar a bola que Rodrigão cabeceara com precisão milimétrica. Naquela cabeçada enfartaram, por um instante, dezoito milhões de corações rubro-negros. Mas aquela bola não entrou; nenhuma outra bola haveria jamais de entrar, nunca mais.

A ilha não estava para peixe. O Sport venceu e, como eu dizia, venceu no momento mais oportuno: quando o Figueirense atropelou o Santinha e cravou, na entrada do Z4, o Cruzeiro com seus trinta pontos -- a mesma quantidade de pontos que o Glorioso possuía antes de bater o Santos. A vitória veio na hora certa, no momento em que o time se aproximava da degola, no instante fatídico em que tentavam abater o Leão: mas o Rei da floresta e do gramado reagiu com nobreza e mostrou de onde vem a sua majestade. Aquele jogo de domingo não foi uma simples vitória, eu repito: foi um monumento. Diante dele hão de quedar, admiradas e embasbacadas, as futuras gerações.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Tanto estrago com tão pouco

Nada nessa vida se consegue sem sacrifício, por um lado; nem todo sacrifício recebe o reconhecimento devido, por outro. Esta é a tragédia da existência humana e digo mais: é a grande, a homérica, a shakesperiana tragédia do futebol.

No jogo do Sport contra o Atlético Magrão foi expulso. Magrão, o indefectível, a barreira cuja intransponibilidade é inversamente proporcional à alcunha que o goleiro ostenta. Magrão, o Magno. Era o jogo contra o Galo Mineiro; naquele lance ele estava um pouco mais adiantado do que devia. A bola iria encobri-lo; seria um gol para o time da casa logo no primeiro tempo da partida, seria uma tragédia, um desmantelo. Todos sabemos o que são esses fracassos logo no início. É o dia que começa com o pneu do carro furado, é o encontro onde você troca o nome da menina. Em situações assim o Universo conspira e, parece que por puro sadismo, por pura vontade de ver o circo pegar fogo, faz todas as coisas degringolarem de um modo bruto e fatal. Quantas frustrações não morreriam no nascedouro se algumas pequenas coisas -- se a camisa não se houvesse sujado durante o almoço, se o despertador não tivesse falhado -- tivessem ocorrido de modo diverso...! Guerras haverá que teriam sido desnecessárias, desaparecidas como por mágica junto com a constipação que não se deu. São mistérios do curso das coisas.

Foto: GloboEsporte

Mas de volta à Magrão. O arqueiro viu mais alto e viu mais longe; viu a bola que lhe iria encobrir, a moral do time abatida, a reação que o Glorioso seria incapaz de esboçar. Viu tudo isso em um átimo e decidiu sacrificar-se pela equipe. E, senhoras e senhores, que sacrifício! O mundo antigo não viu um maior em Leônidas no Peloponeso. O goleiro saiu de cena para que o time pudesse prosseguir -- saiu da área, meteu a mão na bola, afastou o perigo. Foi punido, foi expulso, mas preservou o gol do Leão. Dir-se-ia um soldado alvejado que, no entanto, preservara o seu posto; e, ao morrer, tinha ainda nos lábios o sorriso do dever cumprido. Sim, Magrão escorraçado do campo por um árbitro insensível -- incapaz de reconhecer o valor, o sacrifício, a abnegação -- tinha no rosto a placidez de um Templário que expirava fechando a brecha da muralha de Jerusalém.

Mas, mistérios das quatro linhas!, o gol evitado por Magrão foi o próprio estopim da desestabilização rubro-negra que ele quisera evitar. Ou melhor: a expulsão do goleiro provocou no time o impacto terrível de um exército cujo capitão fosse ceifado pelos inimigos. Demorou para se restabelecer e mais: nem mesmo um jogo depois o time estava plenamente restabelecido. A torcida caiu em cima do goleiro reserva; o time não soube dar uma resposta à altura da mal-educação da torcida. A verdade é que, paradoxalmente, tentando não ser ferido, o Leão se machucou naquele cartão vermelho de Magrão. E nunca se fez tanto estrago com tão pouco. Foram apenas dois gols nos últimos dois jogos -- até a minhoca do canal conseguiu furar mais vezes a rede rubro-negra e nem assim foi capaz de fugir da goleada! Mas o futebol é um esporte caprichoso -- e nesses dois míseros gols escoaram seis pontos da competição. Foram os dois gols mais caros que o Glorioso já tomou.

Volto à Magrão. Imagino a sua ansiedade e a sua preocupação; ele deve ter visto o time estiolar, apagar-se, desvanecer, e imagino que talvez tenha maldizido a inutilidade do próprio sacrifício. Mas, não, nobre goleiro, excelso atleta, não te deixes abater assim! A grandeza das atitudes está nelas próprias e não reconhecimento alheio que lhes devotam. Se a torcida não foi capaz de te perdoar é porque não estava no campo, na tua posição; é porque não calça as tuas luvas, é porque não enxerga tão longe quanto tu te acostumaste a enxergar. Salvaste o time uma vez, Magrão, lá em Minas, naquele jogo contra o Galo, naquele lancinante cartão vermelho -- e não importa que os resultados finais não tenham estado à altura dos teus esforços heróicos e do teu abnegado sacrifício. Sim, tu salvaste o time. Não penses mais nisso. Cuida, apenas, de voltar o quanto antes a campo -- para que possas salvar o Leão ainda outras e muitas outras vezes.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O sorriso de Durval

Diz o ditado que a cavalo dado não se olham os dentes. Pode significar que não se deve ficar procurando defeitos em presentes; mas pode também significar que, para quem deseja um equino, os seus dentes não são a coisa mais importante. Um bom cavalo deve ter força, músculos, velocidade, porte; um sorriso bonito, pra sair na foto, não passa aqui de artigo de perfumaria.

E o nordestino está condicionado hereditariamente a passar sem perfumaria. São muitas as agruras do sertão e da caatinga, é bastante a dificuldade da vida longe do eixo que hoje recebe todas as atenções. Somos o filho mais velho, eis a verdade: mas o filho cujos esforços foram preteridos no curso da história. Hoje os irmãos mais moços colhem os louros por nós plantados; tudo bem, que louro a enfeitar a fronte também é coisa como dentadura de cavalo. Há quem não viva sem as fotos, e há também quem não possa viver com esta sorte de preocupações estéticas. Aprouve à Providência que nos encontrássemos entre este segundo grupo.

Também há outro adágio popular que diz que, quem ri muito, dá bom-dia a cavalo. Porque há algo de errado com o riso fácil e mais: há um quê de fraqueza, de insegurança, de imaturidade na exposição constante da própria arcada dentária. Os grandes feitos são conseguidos com luta e não com risos. Os sorrisos só abrem as portas que já estão predispostas a se abrirem; para adentrar em uma fortaleza inexpugnável, para ultrapassar um portão trancado contra o nosso avanço, aí se necessita de músculos e pontapés, de aríetes e de investidas, de rostos contorcidos pelo esforço físico realizado.

Veja-se Durval. É o símbolo de tudo isso que estou dizendo. Sisudo e sério, a sua mera colocação na zaga rubro-negra já impõe terror aos adversários, já provoca o efeito de uma carranca a afastar maus espíritos, como já disse aqui. Mas é mais. Em seu rosto rude os traços nordestinos encarnam-se de um modo admirável: dir-se-ia que, em Durval de sobrecenho franzido, está presente e eloquente toda a nordestinidade. De olhar firme, Durval sabe que se exigem mais esforços para arrancar alimentos à terra árida do sertão. De lábios contraídos, Durval demonstra estar preparado para se deparar mais com inimigos dos quais se defender do que com benfeitores a granjear-lhes a simpatia. De rosto fechado, fechando a zaga, Durval encarna o ideal nordestino, de muito esforço e pouco reconhecimento. Não é apenas um jogador, é um ícone, um avatar, um paradigma.

Foto: IBISMANIA

Mas há ainda mais! O nordestino, um forte, acostumado com o lavor quotidiano, com a faina incessante, vê mais longe. Aprendeu a enxergar a plantação verdejante ainda no solo rachado; sabe escutar a chuva que vem mesmo quando a nuvem alvissareira é apenas uma pequena e quase imperceptível mancha no horizonte. Domingo Durval viu mais longe. E, vendo, pôs-se a sorrir. O sorriso de Durval, tão alvissareiro quanto raro, deve ter provocado terror nos tricolores -- se algum tricolor o chegou a ver. Mais até: se a carranca de Durval impõe medo, o seu sorriso provoca pânico e horror. Se da carranca os atacantes temem se aproximar, da mera visão do sorriso todos os jogadores adversários fogem em debandada. Porque há algo de estranho no sorriso daquele que nunca ri. Há um mistério, um augúrio, um presságio. Que perturba os oponentes na mesma medida com que alegra os companheiros.

Eis a verdade: no sorriso de Durval já estava contida a virada rubro-negra. No primeiro gol, quando o Sport recém perdia de dois a zero, o velho Durval -- o mito, a entidade, o sobrenatural Durval -- já via a vitória leonina, já contemplava os cinco gols do Sport. Com a mesma clareza com que o sertanejo vê a grama vicejante onde os visitantes apenas conseguem ver o solo esturricado. A verdade é que, naquele gol, Durval já sabia e já antegozava a vitória, e já saboreava a glória leonina. Aquele sorriso revelava e escondia um segredo incompreensível aos pobres mortais que o flagraram. Depois dele era só esperar a goleada fatal -- que Durval já tinha visto, e com a qual já se alegrava, e pela qual já sorria.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Tudo volta ao normal nos campos recifenses

O grande papel do futebol talvez seja o de mostrar a capacidade de superação. O de escancarar a possibilidade de mudanças, de reviravoltas, mesmo diante das maiores adversidades, mesmo quando tudo parece não ter mais jeito. Trata-se de um esporte onde o esforço se valoriza e se recompensa e mais: é esporte onde todo o suor que se derrama é de algum modo sempre recompensado.

O clássico de ontem revelou bem isso. Não estava o Leão em seus melhores dias; o Glorioso estava em uma fase que não fazia jus à sua majestade. Perdera do Santa Cruz pela Sul-Americana e fora derrotado pelo Corinthians em uma das talvez piores apresentações do elenco. Vinha de duas derrotas, do descaso da torcida, da falta de perspectiva na competição. Mas domingo era dia de clássico -- e que clássico! Era preciso fazer bonito, era preciso jogar para a torcida, preparar-lhe um agrado, encher-lhe os olhos.

E o Sport fez bonito. Fez bonito como há muito não fazia, manchado que estava o padrão rubro-negro pelas derrotas sofridas, este ano, nas mãos do rival. Fez bonito e de certo modo lavou a honra leonina, liberando o grito de vitória que estava entalado na garganta de dezoito milhões de rubro-negros.

Foto: Diário de Pernambuco

A minhoca do canal tentou se levantar; uma patada do Leão derrubou-a por terra -- mostrando que lugar de minhoca é com o rosto no chão mesmo. O jogo de ontem restabeleceu a ordem futebolística pernambucana: mais uma vez o Sport foi implacável, mais uma vez o santinha levou uma lapada. Tudo volta ao normal nos campos recifenses.

Por duas vezes o Sport esteve atrás no placar; por duas vezes não desistiu, não baixou a cabeça, correu atrás e recuperou a vantagem. E nem precisou de todos os noventa minutos: na verdade o primeiro tempo foi quase todo entregue, de bandeja, à satisfação tricolor. O Santa Cruz abriu o placar logo no começo do jogo, e daí até o fim da etapa inicial foi somente um mar de rosas para os visitantes. O Leão, predador terrível, preparava o bote. Cansava a presa e preparava o ataque.

Porque foi no segundo tempo que tudo aconteceu. Parece até incrível que tanta coisa pudesse acontecer em uma etapa complementar somente; os quarenta e cinco minutos foram poucos para tantos gols. Aos quatro minutos, dois a zero para os visitantes; aos vinte e cinco, dois a dois. Aos vinte e sete três a dois para a cobrinha; aos trinta e quatro, tudo igual na Ilha do Retiro. "Tempo de sobra pra virar", um amigo profetizou a meu lado.

Parecia que ele já sabia. Aos quarenta e quatro, quatro a três para o Glorioso; enfim, aos quarenta e seis, Everton Felipe consagrava a goleada. 

Cinco a três -- e o Santa Cruz até agora está desorientado, procurando quem o atropelou. Sentiu o gosto da vitória durante quase o jogo inteiro! Mas o Leão é o rei da floresta, e lugar de cobra é rastejando no chão. Ontem foi o jogo que fez tudo voltar ao normal. De novo os times pequenos da cidade apanham nas mãos dos grandes. De novo a competência, a garra e a dedicação são recompensadas. De novo a excelência se impõe sobre o amadorismo. De novo e mais uma vez o Leão ergue um troféu sobre o cadáver inerte da cobra coral.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O tropeço

Tropeçou o Leão em sua disparada. Altivo e senhor de si, pairando acima de todos os seus adversários, desimportou-se da Copa Sul-Americana. A torcida não empolgou o time; aliás a torcida mal estava presente. O elenco não deu o melhor de si; aliás, o elenco, mesmo em campo, estava como que apagado. Sim, senhoras e senhores, o jogo de ontem, é preciso reconhecer, em nada, nada, esteve à altura da majestade leonina. Dezoito milhões de rubro-negros e seis mil gatos-pingados -- para os dois times! -- no estádio? Um elenco de matadores, um Diego Souza, um Edmílson, e nenhum gol marcado? Uma defesa inexpugnável, um Magrão, um Durval, e um gol sofrido no final do jogo, de rebote, feito por um atacante do terceiro escalão tricolor? O jogo de ontem, é evidente, salta aos olhos até mesmo para um cego, destoou escandalosamente da realidade dos dois clubes. Foi como um maracanazo mal reencenado.

Foto: Globo Esporte

Consideradas todas as coisas, no entanto, o tropeço de ontem à  noite não passa disso: um tropeço, um tropicão, uma topada que se dá inadvertidamente no curso da caminhada. Há a dor instantânea, há a raiva do momento, há o palavrão que escapa dos lábios -- mas não passa disso. Não machuca de verdade, não é uma doença que debilite, uma moléstia que retire as forças do corpo e contra a qual seja preciso lutar. Nada disso. A topada é uma dor passageira e momentânea, não uma crise crônica que acarrete invalidade. Os tropeços são tão-somente uma contingência às quais estão sujeitos todos os que têm a terrível ousadia de caminhar. O glorioso Leão da Ilha, mais que isso, tem a audácia de correr...! É de se espantar que ele por vezes tropece?

Não é pelos dedões arrebentados que se afere o estado de saúde do indivíduo. Os músculos retesos, os ossos firmes, a visão acurada, os humores equilibrados: lamentar-se-á porventura a sina de um atleta de tais características por conta do machucado na ponta do pé? Chorar a sua triste sina não parece um pouco exagerado, um despropósito, uma mise-en-scène histriônica? Veja, acusar disso o Leão é, na verdade, admitir que não existe razão para o acusar. Não se encontrou nada que censurar no time, que vem em grande momento, em campanha gloriosa; não se encontrou nada e, portanto, vai-se apegar a mesquinharias. Não é como se o elenco estivesse em estado terminal por conta de um gol -- um reles gol -- sofrido no final do jogo sob a apatia do torcedor rubro-negro. A avaliação clínica exige um conjunto de fatores; um prognóstico de morte iminente por conta de um tropeço é coisa desarrazoada, mais própria de mulheres histéricas e de homens efeminados que não sabem o que é derramar o sangue no campo de batalha. Há mais vitalidade no esportista que tropeça em plena corrida do que no velho reumático cada vez mais preso ao solo. Sim, senhoras e senhores, às vezes a condição de quem não tropeça é muito pior!

O Sport é o jovem de porte atlético; o Santa Cruz, o velho acometido de reumatismo. Caindo ontem, o Sport já hoje se levanta, já sacode a poeira do corpo, já pensa na próxima rodada do brasileirão. Totalmente diferente é o estado da velha minhoca do Canal do Arruda -- que, tendo levado uma pancada no início do Campeonato Brasileiro, até hoje não conseguiu se levantar direito. Despencou do topo da tabela para a penúltima posição e de lá não consegue sair por mais que se esforce, como um velho entre dores horríveis que, caído, por mais que tente e porfie, é incapaz de se levantar sem que lhe ajudem. Que importa que, ontem, meio mal das pernas, meio manco, o velho tricolor tenha permanecido de pé na Sul-americana enquanto o Leão tropeçava? Não é nos fatos isolados e extraordinários que se caracteriza a doença ou a cura. A mera derrota rubro-negra de ontem, totalmente eventual, escandalosamente acidental, não será uma panaceia para todas as mazelas dos tricolores. Infelizmente até mesmo para Pernambuco, que segue na competição tão mal-representado, o jogo de ontem não será capaz de restabelecer o Santa Cruz. A cobrinha escapou das garras do Leão, é verdade; mas, reumática e banguela, não terá como fazer frente aos adversários que terá que enfrentar. Sim, senhoras e senhores, será um massacre de dar pena.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O gol das quatro vitórias

As coisas nem sempre são exatamente como parecem, e no futebol como na vida às vezes os adversários contra os quais precisamos pugnar não se nos apresentam do outro lado da arena, às claras, fazendo a boa e velha guerra honesta dos barões medievais. Pelo contrário. Às vezes o verdadeiro inimigo é insidioso e se nos acerca sorrateiramente. Certos combates nós nem sabíamos que precisaríamos lutar até nos ver em meio a eles ou por outra: às vezes os outros nem vêem as lutas que estamos travando.

A ingratidão é  esta desproporcionalidade entre o esforço empenhado e o reconhecimento recebido. Ou por outra: o ingrato recebe mais do que dá, mais do que reconhece, levando ao surgimento de uma espécie de mais-valia relacional que expropria o esforçado, o comprometido, o que se importa. Acho até que, se perscrutarem direitinho, verão que é provavelmente na indiferença e não na propriedade privada que se encontra a verdadeira origem da desigualdade entre os homens.

Mas o pior é isto: o ingrato não faz por mal. Os cavalos do coche real mastigam os lírios brancos colhidos para o filho do rei sem que este tenha a menor consciência da tragédia que recende daquelas flores maceradas. Talvez Marius não ignorasse Éponine por perversidade; talvez apenas os seus olhos ofuscados por Cosette o tornassem cego a tudo o mais. Talvez Roxie Hart simplesmente não visse os esforços do seu marido para lhe tirar da prisão -- no entanto, quanta dor em Mr. Cellophane! A ingratidão é invisível porque se esconde por dentro da carne alheia; quem não a sofre não a vê.

Veja-se o Sport. Fez ontem uma das mais extraordinárias partidas do ano e mais: conquistou uma de suas vitórias mais estrondosas. Dir-me-ão que o jogo acabou em um a um; eu retrucarei que nem todas as vitórias exigem um placar positivo. Ora, o Leão foi vitorioso porque lutou de uma vez só não apenas contra um, mas contra quatro adversários simultaneamente lançados contra si.

Foto: ESPN

Lutou contra o Internacional e foi a luta que todo mundo viu. Mas precisou lutar também, antes mesmo de entrar em campo, contra o desfalque do seu próprio elenco. Diego Souza e Rogério, contundidos, não poderiam jogar; e a luta contra as próprias limitações é, sempre, a mais encarniçada das lutas. Lutou, ainda, contra a arbitragem, que fez questão de iniciar o jogo dando um a zero para o time gaúcho, de graça, marcando um pênalti que ninguém viu. Tivesse Seijas dado um mortal circense dentro da área e o pênalti não seria mais pateticamente marcado. O placar já começou, assim, em desvantagem para o Leão. Mas o Sport lutou também, e foi a luta talvez mais cruel, contra a torcida rubro-negra.

Qual o público na Arena Pernambuco? Cinco mil torcedores? Ora, dezoito milhões de rubro-negros, e apenas cinco mil comparecem ao jogo? A um jogo aqui em Pernambuco? A punhalada é por demais dolorosa -- a ingratidão, onde medra, sufoca. A indiferença machuca, aniquila, destrói: e como pode o clube jogar na sua própria casa se os seus próprios torcedores, desempenhando o papel do desprezo, recusam-se a ver o time jogar? A torcida, cansei de dizer, é a mulher do time. Que homem não se esforça por ser melhor quando sabe estar sob o escrutínio daquela que deseja? E, a contrario sensu, como pode o cavalheiro cortejar a dama que não se encontra presente?

Lutando contra tantos adversários ao mesmo tempo, qualquer time teria sofrido uma goleada. Foi até covardia. A despeito de tudo isso, contudo, o Leão não se deixou desanimar. Ergueu a cabeça e lutou contra o time gaúcho e contra o desfalque do próprio time, contra o sr. Grazianni Maciel Rocha e contra a própria torcida rubro-negra. Contra todos e contra si mesmo chegou ao gol no final da etapa complementar e eu digo: jamais se viu um gol tão suado! Foi um gol e quatro vitórias em um chute só. Jamais foi tão grande o mérito de enfiar uma bola por sob a trave adversária. Naquele rede balançada Vinícius Araújo abatia o Inter e vingava o árbitro, a natureza e a ingratidão da torcida. Merecia, sozinho, o troféu do campeonato.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A escolha do Leão

O que houve com o Sport? O que aconteceu com o glorioso rubro-negro, ceifado impiedosamente na sua escalada no campeonato, derrubado de maneira horrenda na sua corrida rumo às primeiras posições da tabela? Muitas teorias já foram elaboradas e ainda o haverão de ser. Uns dirão que o time ensoberbeceu-se, outros que o Botafogo jogou melhor. Comentaristas despeitados haverá dizendo que o Sport é um time pequeno e, com essa derrota, ele apenas se põe no seu lugar. Outros, mais prosaicos, dirão que é assim mesmo, que não se pode ganhar sempre, que nem mesmo Napoleão venceu todas as batalhas que travou.

Foto: Globo Esporte

Direi diferente. Direi que o problema do Sport foi o excesso de disciplina ou, por outra, a tenaz e brutal indiferença com a qual ele perseguiu a única coisa que lhe interessava no momento. O Sport, todos o sabemos, vinha se recuperando de uma campanha inglória. Esteve no Z4 -- absurdo incompreensível. Pior. Esteve no Z4 atrás do Santa Cruz. Traumas desta sorte têm o condão de abalar o time; no Sport teve o efeito de tornar todo o elenco possuído por um espírito de cachorro louco -- em corrida desvairada, insana até, abocanhando o que quer que se colocasse em seu caminho.

E assim foi o time, nas últimas rodadas, em sua fúria sagrada, em sua sede de sangue, estraçalhando quem quer que estivesse em sua frente. A chacina foi horrível e por outra: o Atlético, o Grêmio, o Flamengo precisarão de muitas rodadas ainda para se recuperarem da devastação. Foi uma carnificina de fazer as páginas das gazetas esportivas pingarem mais sangue que o caderno policial. Desde o saque de Constantinopla que não se via uma devastação assim.

Mas não foi suficiente. Mesmo assim não foi suficiente e o time, que chegou a respirar no G10, não logrou estabelecer-se lá com a solidez que a nação rubro-negra exigia. Veio então a partida contra o Botafogo. Era vencer ou vencer; a vitória era o único resultado que importava e, portanto, foi a este objetivo que os onze jogadores se devotaram com todo o ardor de suas chuteiras. O objetivo era nobre, o desempenho, correto. Todo o problema foi aquela falha no gramado.

Acréscimos do primeiro tempo. O time carioca avança. Desvencilha-se da zaga e chuta -- um chute mesquinho, burocrático, protocolar. O legítimo chute operação-padrão. A torcida não chegou nem mesmo a prender a respiração e foi essa a sua ruína.

Entre o gol e o jogador, sabíamos todos, havia uma bastilha inexpugnável, havia Magrão indefectível. Magrão semideus descido do Olimpo pelo qual não passa nem bola de gude. Mas se os deuses do Olimpo são caprichosos, muito mais o são as Moiras que tecem as tramas do futebol. Entre Magrão e a bola havia, imperceptível e traiçoeiro, pérfido e falaz, um montinho irregular de grama. O goleiro foi na bola, a bola foi na falha do campo, o goleiro perdeu o tempo, a bola quicou no fundo da rede. Foi tão inesperado que mesmo a torcida alvinegra demorou para gritar gol. Na França revolucionária não penetraram na Bastilha de maneira tão patética; no entanto, aquele gol nos acréscimos da etapa inicial desestabilizou a majestade leonina mais que o 14 de julho iniciou a ruína da dinastia dos Capetos.

Toda esquadra sagrada tem sua Queroneia. Ferido, o Leão lançou-se sobre o adversário, apenas para levar logo em seguida segunda estocada. O Sport não estava preparado para perder e por outra: fez sua escolha. Após o primeiro gol precisava reagir: perder de um gol, ou de três, ou de cinco, eram os mesmos pontos a menos. Eis a verdade: o Sport continuou tentando vencer, em sua teimosia cega, em sua fúria brutal, a despeito dos gols que sucessivamente ia levando. Não foram falhas da equipe: foi a disciplina de, alvejado, continuar avançando. Foi uma escolha. As grandes derrotas só são sofridas por quem se arrisca a grandes vitórias. Chamaram o time de desesperado por se lançar de maneira desabrida sobre o time da casa; tivesse o elenco virado o placar no segundo tempo, ter-se-ia transformado o desespero em garra e ousadia. As críticas seriam agora elogios rasgados.

Não, o time fez o que devia ter feito. Vítima de uma fatalidade tentou reagir. Não logrou êxito, é pena, mas ainda assim merece o apoio da torcida. As feras por vezes davam no Coliseu um belo espetáculo, mesmo quando eram abatidas. Lutando até o último minuto, avançando enquanto jorrava cada vez mais sangue, o Leão ferido no campo mineiro deu, assim, prova feroz da sua altivez.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Trinta anos de derrotas

A vitória do Glorioso no último sábado tem um gosto especial para o torcedor pernambucano. Não somente porque ela entroniza o Sport no G10, lugar a que o clube pertence por tradição e excelência. Não somente porque foi uma bonita vitória, consolidando a invencibilidade de seis rodadas na disputa. Não apenas porque foi sofrida, arrancada com garra, na raça, com um golaço de Edmilson -- para afastar o mau agouro dos que deploravam a (não obstante deplorável) saída de Diego Souza. Mas a vitória tem um sabor especial porque foi conquistada sobre o Urubu da Gávea, o carniceiro carioca, o conspurcador do sagrado manto rubro-negro.

E que partida! Dois rubro-negros se mediram e se enfrentaram. O rei da floresta venceu o rei da carniça. Edmilson enterrou a partida já no primeiro tempo -- com a fúria de um mercenário faminto, com a precisão de um toureiro experiente. Mas daí em diante nenhum dos dois times entregou o jogo. Foram ainda setenta minutos de investidas e retiradas, de chutes e defesas, de dribles sedentos e passes meticulosos. O urubu agonizava com as patas do leão sobre seu pescoço, e que agonia -- foram setenta minutos de estertores terríveis. Por vezes parecia que a ave agourenta ia conseguir escapar. Ao final sucumbiu. Sim, ao final foi o grito de guerra -- de vitória! -- da torcida do Sport que ecoou por sobre a Arena de Pernambuco

Foto: Blog do Torcedor

Mas que combate...! Duelo de morte, inimizade figadal, cujas raízes remontam pelo menos a 1987. Naquele ano, para orgulho da nação rubro-negra, o troféu do campeonato brasileiro revestiu-se de vermelho e preto. Naquele ano, para desespero e confusão dos cariocas, foi o Leão da Ilha que rugiu no mais alto do pódio.

O Flamengo não aceitou. Fez birra, fez chicana. Passou os últimos quase trinta anos fazendo chicana, e mais: nunca se viu um chororô tão intenso e tão inconformado. Um chororô de fazer frente às lágrimas de Portugal. Envergonhando as cores sagradas do uniforme que enverga, o Flamengo se humilhou e rastejou, lambendo sapatos Oxford em todas as repartições burocráticas que encontrou na sua frente. Foram quase trinta anos de rastros, e mais: parece que o time nunca mais se levantou novamente. A derrota de 87 mexeu-lhe com os brios, esta é a verdade: e a recusa à disputa honesta, no campo, na raça, fez com que o clube adquirisse uma assustadora necessidade de reconhecimento.

Perdeu na CBF. Perdeu na FIFA. Perdeu na Justiça Comum. Por onde tem andado, nos últimos quase trinta anos, o Flamengo tem colecionado derrotas de dar cada vez mais pena. A chicana megalômana, a chicana de todas as chicanas, é a situação atual, onde pretende o rubro-negro carioca que o STF, a Corte Constitucional do país, imiscua-se nas competições das Federações Esportivas e declare ter havido, em um mesmo ano, dois campeões brasileiros. Ou seja: incapaz de negar o campeonato do seu arqui-rival pernambucano, espera o time carioca -- que não jogou em 87 -- que lhe reconheçam, na canetada, um lugar no pódio onde ele não esteve. Que ele se negou a disputar.

Tudo vão. Se não houvesse coisa julgada, se pudesse o time carioca entrar novamente na Justiça quantas vezes quisesse, tantas outras vezes perderia. Perderia pela mesma razão que perdeu em 1987: porque quem não joga perde, porque os acochambrados dos bastidores não são capazes de fazer frente a um esporte que se decide dentro das quatro linhas do campo de batalha. É naquele campo verde, sobre a grama e sob o sol, que as batalhas são travadas e vencidas, onde os vencedores recebem os aplausos do público e os louros da glória. É naquele campo somente que os exércitos se enfrentam, disputando o troféu -- a taça que, caprichosa, não se deixa possuir senão por quem derrama suor e sangue por ela. É dentro de campo, em suma, que se fazem os campeões.

O Flamengo recusou o campo em 87; a taça recusa o Flamengo desde então. É esta a verdade que assombra o time carioca desde 1987. É isto que faz com que ele tema e trema a cada vez que enfrenta o Sport: vê nos olhos leoninos a sua desgraça, enxerga no manto rubro-negro a sua vergonha. A derrota da última rodada foi a reencenação de uma derrota histórica. Mais uma vez o Leão abateu o velho Urubu: naquele gol de Edmilson o Flamengo viu trinta anos de derrotas. Foi por isso que, ferida, a velha ave agourenta não conseguiu mais alçar vôo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A cota já cumprida

Há certas coisas que mesmo no futebol brasileiro são extravagantes e parecem forçação de barra. Por exemplo: dois pênaltis no mesmo jogo em favor do mesmo time. Ora, o árbitro já não é a personagem futebolística mais amada de todas; marcando duas penalidades máximas em sequência, assim, fica difícil fugir à impressão de favorecimento. E a figura do juiz ladrão é problemática no futebol. Porque existe aquela sensação, tão humana quanto saudável, de que um jogada mal feita é, ao fim e a cabo, responsabilidade de quem jogou mal. A meritocracia no futebol funciona que é uma beleza. Agora, uma jogada desempenhada com maestria, mas tolhida pelo apito -- ou pela ausência do apito -- do árbitro, aí já é uma injustiça que clama aos céus. É algo com que não se pode conformar, que come por dentro, que se fica remoendo, tirando o sono e abrindo as úlceras.

Veja-se por exemplo o último jogo do Sport. Quando Rogério avança impávido, colossal, desbaratando a defesa do Figueirense como quem espanta um enxame de moscas com um balançar de mãos, tudo isso para, ao final, explodir a bola em cima de Thiago Rodrigues: é uma frustração passageira. Xinga-se o jogador por um átimo apenas; no instante seguinte já se está torcendo pela próxima jogada.

Agora uma outra cena. Edmilson invade a área. Somente ele e o gol do Figueirense. Chuta. Perde o gol. Atrás dele, no rebote, Rogério. Rogério matador. Rogério esperança leonina. Rogério em cujas chuteiras estão concentradas todas as esperanças de dezoito milhões de rubro-negros. Rogério prestes a decidir o jogo e mais que isso: parece que está escrito nas estrelas, determinado pelos astros, que Rogério vai liderar a virada do Leão.

Nos umbrais da vitória, no entanto, no limiar do grito de gol que já ensaia a sua saída triunfal do fundo da garganta do torcedor, Rogério é cavado. Impiedosamente massacrado por trás, derrubado com uma brutalidade que o futebol jamais viu tão cínica e tão descarada. Foiçado de maneira vil e covarde, às escâncaras, nem sei como as pernas de Rogério não foram partidas em duas. Atônitos, todos olham para o juiz. O juiz, com cara de paisagem, finge que não é com ele. A bola corre pela linha de fundo -- e com ela as esperanças rubro-negras.

Eis a verdade: o juiz não marcou aquele pênalti e não o teria marcado nem mesmo que as pernas de Rogério tivessem sido quebradas em duas. Nem mesmo que o atacante tivesse sido partido no meio pela brutalidade da falta do furacão alvinegro. Não o marcou porque pensa que tem uma cota a cumprir. E eis o ridículo dessa história toda: por imaginar que já tinha cumprido a sua cota, o árbitro já estava previamente condicionado a não marcar nenhum pênalti em favor do Sport. Por julgar já ter sofrido o seu quinhão de penalidade, o Figueirense se julgava autorizado a exterminar o ataque rubro-negro, a devastá-lo, torar-lhe as pernas, sem que lhe adviesse por isso a menor punição. E até o torcedor rubro-negro, até o próprio prejudicado, por já ter obtido um pênalti em seu favor dez minutos atrás, ficou com escrúpulos de pedir -- de novo -- o pênalti claro e cristalino, o pênalti paradigmático, o pênalti que poderia constar nos cursos de arbitragem como exemplo de pênalti e que o próprio Platão, se o visse, diria estar diante de um ente exsurgido miraculosamente do mundo das essências puras. Ninguém achou devido aquele pênalti -- que, no entanto, foi talvez o pênalti mais escancarado do campeonato.

E no pênalti não marcado selou-se o empate. Cujo gosto é amargo porque se sobrepõe a uma vitória que a torcida chegou a vislumbrar. Eis a verdade: do chute desperdiçado de Rogério o comentarista esportivo não vai nem se lembrar amanhã. Mas Rogério chacinado, ensanguentado no chão, abatido como um porco, com as pernas partidas ao meio para não chegar ao gol catarinense, e todos virando o rosto para o outro lado, e todos fingindo não ver -- essa imagem haverá ainda de nos assombrar por muito tempo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Não se faz isso com a torcida

Certas coisas não se fazem com o torcedor: bicho caprichoso, precisa ser tratado com mimos e atenções. Não é verdade que ele tenha um amor desinteressado, gratuito, quase platônico para com o seu time. A verdade é que é o contrário: o torcedor tem uma mesquinha relação de interesse com o clube. Está disposto a gritar no estádio, contanto que o time retribua com uma bonita apresentação; paga a camisa e faz propaganda do clube, desde que ele faça a sua parte e realize uma boa campanha.

Já escrevi aqui que o torcedor é como a mulher. Resgato a metáfora e complemento: por conta disso, ele precisa ser agradado. Quando o torcedor sai do trabalho, de noite, cansado, no meio da semana, pega a família, se dirige ao estádio, compra os ingressos, o refrigerante e o galeto, ele espera ter este seu sacrifício recompensado com uma boa apresentação do time. Pode até ser que ele não tenha coragem de o dizer com todas as letras: mas lá no seu íntimo deseja que o seu time seja o protagonista do espetáculo que vai ditar o teor das conversas pelo resto da semana.

Atenção, que isto não significa ser um mau perdedor e só querer que o time ganhe. Evidentemente o elenco não precisa ganhar o tempo inteiro; mas precisa, sim, jogar, jogar bonito, jogar se esforçando, jogar dando o melhor de si -- ou ao menos convencendo os espectadores de que está dando o melhor de si. A mulher não precisa que o seu homem seja exitoso em todas as suas empreitadas; mas ela exige, sim, que ele se esforce. Uma mulher pode passar fome ao lado de um homem que saia todos os dias em vão para procurar emprego; mas a mesma mulher vai expulsar de casa o sujeito que não se levanta do sofá, ainda que o lar esteja em condições econômicas confortáveis. No amor e no futebol é o esforço e não o resultado prático o que satisfaz.

Aquilo que o time do Sport fez com a sua torcida ontem não se faz com a mulher nem com a amante, não se faz com uma empregada nem com uma vulgívaga. Uma sequência de três vitórias consecutivas não pode ser interrompida com uma derrota em casa; principalmente, não pode ser interrompida com uma derrota para o último colocado do campeonato. Todo torcedor rubro-negro conhece o carma do lanterna; mas um elenco destruidor de tabus e exorcizador de maldições não pode sucumbir diante do fantasma da última colocação.

Ou melhor: pode até cair, mas precisa cair lutando. A torcida admite a conspiração cósmica, a reunião das bruxas, o azar de marreco; o que não admite é a cabeça baixa diante do destino fatídico. Por mil vezes o time pode ser humilhado pelo lanterna; mil vezes a torcida condescende, contanto que a cada uma delas os jogadores mostrem estar deixando nacos de carne e poças de sangue pelo campo. O que a torcida não admite, nem uma única vez sequer, é o time perder porque não jogou.

Ontem o Sport passou quase o jogo inteiro perdendo sem jogar. Dir-se-ia que o Coelho ganhava por W.O. na casa adversária. Nada daquilo se admite. O trabalhador que vai cansado à Ilha não é digno de ser tratado com tamanho desdém. O pai de família que leva seu filho ao estádio não merece que lhe façam -- ao seu filho! -- uma vergonha dessas.

Somente nos últimos estertores do jogo, já esgotado o tempo regulamentar, Mark González pôs fim à agonia. O empate que ele heroicamente arrancou, muitos dos torcedores não viram -- decepcionados que estavam, voltando já para casa, xingando a equipe. Não se trata a torcida dessa maneira; quando menos porque a torcida sabe ser cruel. Mas na constelação de estrelas apagadas do Leão só quem brilhou no céu desta quarta-feira foi o meio-campista que entrou no segundo tempo. Lutou e lutou e lutou até o último segundo pelo gol! Que o exemplo dele contagie os seus colegas, ou melhor: que os colegas entendam que é desumano exigir tanto assim de um jogador até os últimos instantes da partida. Não se faz isso com um colega, nem mesmo com um reserva. E, decididamente, não se faz isso com a torcida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A maldição do centésimo jogo

São muitas as assombrações que povoam o imaginário popular recifense. Mesmo na capital as nossas ruas são repletas de seres fantasmagóricos. É o fantasma da menina que foi emparedada viva por seu próprio pai. É a alma penada da debutante que morreu tragicamente em sua própria festa de quinze anos. É o velho decrépito que come fígados de crianças para aliviar a sua doença. Fossem todas essas personagens sinistras reunidas em um único evento paranormal, dir-se-ia um festim diabólico para Hitchcock nenhum botar defeito.

Estas nossas lendas, nós as alimentamos e mantemos vivas porque elas justificam os nossos fracassos e as nossas frustrações. Ser assaltado por um trombadinha chega até a ser censurável; dar de cara com o temível Boca-de-Ouro ao dobrar uma esquina, aí já é um embate que foge às nossas forças naturais. Enfrentar um moleque de rua é algo de que um homem honrado não pode fugir; escapar da Perna Cabeluda, aí já é proeza de que herói algum jamais conseguiu se gabar. E, claro, fazendo par a esses seres fantásticos há toda sorte de azares, mandingas e maldições -- todos com a mesma taumatúrgica missão de justificar nossos malogros. Pode parecer que o sobrenatural nos condena, mas é o contrário: o sobrenatural nos redime.

Por conta disso há quem busque espectros para justificar as derrotas. Mas há também quem desafie os fantasmas para coroar as vitórias.

Diego Souza completou no sábado o seu centésimo jogo com a camisa rubro-negra no meio de um redemoinho de grandes expectativas. Havia, uivante, a maldição do centenário a lhe assombrar. A camisa 100 não dá sorte e, por outra, serve até de desculpas prévias para eventuais más apresentações. O centésimo jogo, todos sabem, é como um encontro fortuito com algum demônio noturno. Tudo se explica, tudo se desculpa, tudo se perdoa nesses grandes marcos futebolísticos.

Mas para Diego Souza nada disso estava em consideração. O prodigioso meio-campista ri da má sorte e, orgulhoso, altivo, veste a camisa 100 como quem sai destemidamente à noite para caçar Cumade Fulozinha. O encontro com o sobrenatural é para alguns uma desculpa; para ele, é uma oportunidade. E o craque não decepcionou. Ainda no primeiro tempo deu um passe perfeito para Rogério: este, não fosse derrubado na área, certamente abriria o placar para o time da casa. Mas o ceifaram e o juiz marcou o pênalti, o que acabou não sendo um bom negócio para o time do Atlético. Diego Souza se preparou para bater.

E que pênalti...! Eu poderia, como certa mídia filo-sulista, dizer simplesmente que ele converteu a cobrança. O verbo, no entanto, ficaria muito aquém do que foi aquele pênalti cobrado por Diego Souza naquela noite sabatina. Quem me lesse, assim, não teria a clara visão do que foi aquela cobrança. O meia cobrou o pênalti de uma maneira diáfana, sublime, fantasmagórica até. Com a segurança de um artilheiro, com o domínio de si de um cossaco, com a impassibilidade de uma montanha sobre o prado.

A bola foi exatamente onde deveria ir e por outra -- parecia que uma mão sobrenatural conduziu a bola, milimetricamente, até o seu destino. No ângulo, um golaço. Um jogador normal não poderia bater um pênalti daquela maneira: no ângulo a distância do gol à trave, e da trave a fora, é muito pequena para que se possa arriscar. Mas Diego Souza não "arriscou", porque risco pressupõe alguma chance de dar errado. Ora, não havia essa possibilidade. Quem viu aquele gol sabe que não havia essa possibilidade e outra: naquela cobrança onírica a própria trave, se tal fosse necessário, teria decerto se esticado para acomodar a bola de Diego Souza no fundo da rede.

Um craque é um craque. Para ele não existe gol fácil, não existe cobrança protocolar. Todo chute é um show, todo gol é um espetáculo. Um craque de verdade come maldições com farinha. Para ele todo jogo é uma apresentação, e a centésima exibição do craque rubro-negro não poderia ser diferente. Aquela foi a noite que calou as maldições e impôs silêncio às assombrações recifenses. Para ver Diego Souza jogar os próprios seres sobrenaturais da cidade quedaram-se em silêncio, na arquibancada da Ilha, boquiabertos e assombrados.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O chinelo emborcado

O nordestino é supersticioso. Pode parecer bobagem, mas nós crescemos em meio a este mundo cheio de regras arbitrárias e incompreensíveis. O santo Onofre precisa ficar de costas para a entrada da casa. Atrás da porta, a ferradura pendurada traz sorte. O chinelo emborcado chama morte, assim como dá agouro abrir o guarda-chuva dentro de casa. 

Os exemplos são diversos e, embora possam à primeira vista parecer ignorância, são na verdade um elemento cultural de alto valor pedagógico. A sandália com o solado para cima que precisa ser desvirada sob pena de alguma tragédia inominável nos ensina duas coisas: primeiro, que há causa-e-consequência no mundo; segundo, que as coisas podem ter desdobramentos que não são perceptíveis à primeira vista. Na verdade, é esta específica compreensão de mundo o que está por trás da nossa secular superstição. Não é o pé-de-coelho o que importa, e sim aprender a não julgar as coisas somente de acordo com as aparências. Toda pessoa supersticiosa tem mais visão espiritual do que um racionalista; quando menos, porque aquela mantém o espírito sempre aberto ao desconhecido.

Claro que esta nossa superstição haveria de encontrar reflexos no futebol. Atualmente, o caso mais emblemático é Durval ou, antes, o papel desempenhado pelo zagueiro na defesa rubro-negra. Não falta quem desdenhe do veterano, quem deseje escalar o elenco deixando-o de fora; a hipótese, no entanto, não deixa de provocar uma espécie de desconforto. Procuramos disfarçar, mas a verdade é que o Sport sem Durval nos provoca aquela mesma sensação incômoda que temos diante de um chinelo emborcado.

O zagueiro é conhecido por jamais sorrir. Talvez nem o seu dentista tenha jamais lhe visto os dentes. Isso pode parecer falta de educação; no entanto, se olharmos com mais atenção, perceberemos que se trata simplesmente de uma sadia postura de guerra. Nos combates não convém aos soldados adversários trocarem sorrisos afáveis. As relações exatas entre essas coisas nos escapam: mas a verdade é que o rosto sério de Durval, talvez não saibamos o porquê, nos provoca a segurança de uma casa cujas portas estão, todas, guarnecidas com ferraduras de cavalos campeões.

Durval é uma carranca que, simplesmente posta à entrada, de sentinela, é capaz de afugentar eficazmente os maus espíritos. É Adamastor fechando a passagem à ousadia dos navegantes. A imagem aterradora, o olhar firme, os lábios apertados, o semblante mais carrancudo que as próprias carrancas do São Francisco: diante de figura tão atroz as pernas dos atacantes bambeiam e a própria bola, que um instante atrás corria lépida em direção à área rubro-negra, perde a coragem e vai se esconder atrás das pernas do primeiro gandula que encontra.

O maior desafio do Sport amanhã não vai ser invadir o campo do Atlético: isso o time é capaz de fazer com um pé nas costas. A sua maior missão, a última e derradeira, aquela da qual depende a vida e a morte, será conter o ataque paranaense sem a figura sisuda de Durval, sem o talismã rubro-negro, sem os sortilégios que emanam da sua presença hierática.

Penso que o time devia mudar o padrão e, amanhã, promover uma pequena alteração no uniforme rubro-negro. Em tamanho sobre-humano, cobrindo toda a frente da camisa, deveriam colar a cara de Durval, enorme e ameaçadora, de cenho franzido e olhar assassino. Seriam onze Durvais correndo pelo campo da Ilha do Retiro, avançando contra o Atlético, provocando mais terror que uma horda bárbara surgida no horizonte de uma pacata vila medieval. Diante desta visão dantesca, tenho certeza, o elenco visitante não seria capaz de esboçar nenhuma reação -- e a bola, procurando onde se esconder, acharia o fundo do gol paranaense o lugar mais seguro do campo.