quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Com muita sede ao pote

É a monotonia que nos leva longe; as caminhadas, mesmo as mais longas, são vencidas passo a passo, e os obstáculos mais difíceis são alcançados à custa da tenacidade e da paciência. Os judeus levaram quarenta anos para cruzar um deserto que, alguém poderá dizer, talvez pudessem ter cruzado em quatro; mas o afobamento talvez lhes custasse uma energia que não haveria como repor. Os desertos, é o que quero dizer, têm o seu tempo para serem atravessados: neles a pressa ou a apatia podem ser fatais.

O Sport, todos o sabemos, é dado a arroubos de grandeza. É um Leão majestoso e todo majestade tem os seus caprichos: é um defeito de todo rei, aliás, satisfazer as próprias vontades quando lhe dá na telha. Inclusive assim se perderam muitos povos e muitos reinos: foi por não querer esperar a viuvez que Henrique VIII rompeu com a Igreja; e, séculos antes, em Poitiers, um ataque açodado de João II tornou o rei de França cativo de um exército inglês numericamente muito inferior. A Guerra dos Cem Anos haveria que se consumir lentamente ao longo de todo o seu século: qualquer tentativa de lhe pôr fim antes do tempo só poderia ser catastrófica.

A espera melancólica é o segredo das vitórias ou, pelo menos, das vitórias colecionadas em sucessão. A sabedoria popular manda não ir com muita sede ao pode, e o adágio tem uma metonímia que não pode passar despercebida: não é sede e sim sofreguidão. Afinal ninguém tem controle sobre a sede que sente: o que pode fazer é, no máximo, decidir de que maneira vai se comportar uma vez que está morto de sede.



E o Leão estava sedento ontem -- também pudera. Lutava contra o fantasma do rebaixamento e recém saíra de uma vitória clamorosa. Em Porto Alegre massacrara o tricolor gremista, enfiando-lhe três gols cujos gritos ainda hoje assombram os gaúchos. Respirara fundo, mas a missão não estava ainda concluída. Havia o que fazer, e o time queria fazer depressa. Foi, no entanto, traído pela tabela.

O campeonato espaçou demasiadamente os dois jogos do Leão: goleou na segunda-feira e só foi chamado a entrar em campo novamente na quarta-feira da semana seguinte, dez dias depois. Todo um final de semana se passou em branco, sem que o Glorioso se apresentasse; são tristes e melancólicos esses fins de semana onde o sagrado manto rubro-negro é impedido de brilhar! O Leão, com gosto de sangue na boca, com os pedaços do uniforme gremista ainda presos nos dentes e nas garras, precisou esperar -- e Deus sabe como isso é difícil às feras selvagens, aos reis gloriosos! Mas o campeonato brasileiro é como a Guerra dos Cem Anos: impõe reveses aos que não sabem suportar o melancólico e lento escoar dos seus prazos e dos seus tempos.

Ontem o Leão entrou em campo já esbaforido: dir-se-ia em frenesi a fera, em verdadeira crise de abstinência, precisando desesperadamente marcar os gols que, após a goleada em Porto Alegre, por dez longos dias fora proibida de marcar. Sofreu o pênalti e foi a sua desgraça, porque se afobou e se precipitou, e dezoito milhões de rubro-negros chegaram até a gritar "gol!" em pensamento. Mas o time se lançou com muita sede ao pote: e naquela cobrança de Diego Souza o pote quebrou, e a água fresca derramou-se e se perdeu no gramado da Ilha do Retiro. Sim, forçado a esperar muito, preso e agrilhoado por dias a fio, o Glorioso, uma vez solto, foi com muito afã ao campo -- e por conta disso dezoito milhões de rubro-negros voltaram pra casa com sede naquela noite.

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