terça-feira, 6 de novembro de 2018

Os alquimistas e o monstro

Os antigos alquimistas consumiram as suas vidas tentando descobrir a pedra filosofal. Eram tempos de deslumbramento e de ganância, de grandes fracassos e de esperanças ainda maiores: quanto mais eles falhavam, mais acreditavam que a grande descoberta estava justo à frente, ao alcance da mão, e com mais afinco a buscavam. Foram grandes, não por seus êxitos, mas por sua determinação.

Hoje nós sabemos que aqueles homens jamais teriam conseguido transformar chumbo em ouro. O processo que eles almejavam estava além das possibilidades do universo físico. Os poderes daquela pedra, sabe-se hoje, somente seriam possíveis por algum meio sobrenatural. Coisa que, é bem sabido, não existe neste mundo.

Será que não existe? Passaram-se os séculos! E qualquer um pode dizer, agora, em 2018, com toda a franqueza: há algo de sobrenatural no Sport! A transformação sofrida pelo time nada deixa a desejar àquela buscada pelos medievais. Os alquimistas foram grandes; maior que eles é o Glorioso!

Porque, veja-se: logo após a Copa do Mundo, com o retorno do Brasileirão, o time passou por uma interminável série de derrotas. Perdeu pro Vozão, pro Florminense, pro Vitória, perdeu até mesmo para o Flamengo. Empatou com a Chapecó e, logo em seguida, apanhou do São Paulo, do Santos, do América e do Botafogo. Perdeu do Bahia, do Corinthians, dos Atléticos, do Palmeiras. Não era uma maré de azar, era um oceano inteiro de má sorte, uma conspiração cósmica. Nunca se viu um time apanhar tanto. Os dezessete milhões de rubro-negros chegaram quase a desaprender como se gritava "gol!". Parecia que a glória do Sport era o mesmo que o Hexa do Náutico. Foram três meses de alvirrubrice. Um pesadelo.

No entanto, quando tudo parecia perdido, quando já quase se jogava  a toalha, o time ressurgiu. Não de maneira tímida, mas como um monstro sedento de sangue. Agora, em assombrosa campanha de fim de carreira, o Sport, de repente, voltou a jogar. Atropelou em furibunda sequência o Inter, o Vasco, o Grêmio. E, ontem, para zombar dos matemáticos e confundir os analistas esportivos, despachou o Ceará e consolidou sua saída gloriosa da zona de rebaixamento. Quem o poderia dizer? Após tantos e tão retumbantes fracassos, eis, refulgente, a verdadeira pedra filosofal.

Todos acreditavam que o time já estava com o seu destino selado; qualquer um, olhando para o Leão maltratado, abatido, poderia jurar que ele nem tão cedo fosse conseguir se levantar. Talvez até não se levantasse nunca mais. Mas a tenacidade leonina é proverbial, é antológica e, digo mais, é ontológica: está nas próprias entranhas rubro-negras, está em alguma propriedade alquímica esquecida do traçado do vermelho e do negro: a fera nunca está morta e, quando parece que o time vai afundar como chumbo, ele se transmuda e passa a brilhar como ouro.

O time jazia no fundo do lago do rebaixamento e os seus algozes acreditavam tê-lo desta vez enfim derrotado. No entanto, para desespero deles, como se fosse sexta-feira, como em um filme de terror, a superfície das águas de repente começa a borbulhar. E, de repente, inacreditavelmente, o Leão se levanta, vivo, mortífero, sobrenatural, como Jason furioso que se recusa a morrer.



Sim, o Sport ontem emergiu da Z4 como Jason saindo do escuro do lago em uma noite de sexta-feira 13, sedento por mais uma temporada de matanças. Não era possível; mas, mesmo assim, é real. Quem quiser sobreviver que saia do seu caminho.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A maior vergonha

A natureza tem as suas exigências, seus códigos de conduta, seus rituais. As coisas têm cada qual o seu lugar e nos provoca estranheza quando vemos algo onde não deveria estar. A natureza é avessa a subversões. Acostumamo-nos com a hierarquia dela e aquilo que disso se afasta nos choca e incomoda.

Houve um escritor inglês que disse que os homens são tão superiores aos animais que um homem não se comporta jamais como um animal: ou lhe é superior, quando age racionalmente, ou inferior, quando, deixando de lado a inteligência, entrega-se aos instintos mais baixos. Igual, jamais.

E isso é bastante fácil de se ver. Ninguém faz nada quando um cachorro pega a comida do outro; no máximo se grita para o espantar. Mas não há nisso nada de excepcional. Ao contrário, se fosse um homem a se apropriar daquilo que pertence a outro homem, aí já chamaríamos de outra coisa -- de roubo ou de furto -- e já julgaríamos necessário mobilizar a polícia e os tribunais para identificar e punir o criminoso. E tal homem não poderia alegar em sua defesa não estar fazendo senão aquilo que qualquer vira-lata faz em nossas ruas. A maior prova da superioridade humana sobre o resto da criação reside no fato de os animais não serem sujeitos ativos do Direito Penal.

O superior não age jamais como o inferior: esta é a sua honra e a sua vergonha. Ora, há o Sport e há os outros times de Pernambuco, com uma diferença entre eles quase tão grande quanto a que existe entre o rei da França e um jumento baio. Um jumento que empaca não provoca comoção alguma; mas se Sua Majestade se pusesse de quatro a zurrar, tal feito entraria nos livros de história e jamais seria esquecido. Ora, mas não é a exata mesma coisa, alguém poderia perguntar? Não, não é, porque uma coisa é um jubaio e, outra, um nobre francês. Aquilo que o primeiro pode, não cabe ao segundo fazer igual.

Há o Glorioso Leão da Ilha e há a Tricobarbie, e da mesma forma que um rei não pode andar de quatro por aí o Sport não pode perder como o Náutico ou o Santa. Aquilo, que em um caso seria natural e esperado, é, para o Sport, uma humilhação inaudita. Que um timbu velho saia correndo quando alguém pisa mais forte no chão, nisso não há nada de mais. Agora, que um leão recue cabisbaixo perante o marchar dos ferroviários, isso é inadmissível, é vergonhoso e é notícia.

Ninguém se lembra de quantas vezes a cobrinha teve que voltar moída para o canal. Já o Sport entregar três gols em dez minutos e perder nos pênaltis, isso é o poste mijando no cachorro, é um acontecimento. A maior vergonha da noite de ontem não foi a eliminação da Copa do Brasil, que isso é besteira. O pior, o doloroso, o humilhante, foi ver o Glorioso sendo tratado como a minhoca, apanhando como o timbu.