segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A fera está desembestada, infrene

A vitória no futebol é um conjunto de vários fatores. Há a habilidade individual, a preparação técnica, a qualidade dos jogadores, o entrosamento da equipe, o estado do campo, as condições climáticas, os torcedores, a arbitragem, o momento do time, os astros, o peso da camisa. Ninguém pode cravar o resultado de um jogo antes do fim da partida; aliás, é exatamente por isso que, nas casas de aposta, existe a loteria esportiva. O brasileiro simples há muito tempo entendeu aquilo que os comentaristas profissionais insistem em esquecer: cada jogo é uma batalha incerta, é um lance de dados, é um horizonte misterioso e incógnito no qual não se sabe o que vai se descortinar.

Veja-se o último jogo do Sport contra o Corinthians. O Leão estava na Z4 e, o Timão, na Libertadores da América. A desproporção era grotesca, infamante; parecia um pugilista bem treinado contra um moleque de briga de rua. Eis a verdade, meus amigos: existem certas situações em que a derrota não machuca tanto. Há certas batalhas que não é desonroso perder. No futebol há partidas que, perdidas, dão a sensação de se estar deixando escorrer preciosos pontos por entre os dedos da mão. Por outro lado, há rodadas das quais já se espera que não sairá nada mesmo. Essa era a opinião geral rubro-negra sobre a 24ª rodada do Brasileirão. Ninguém achava que iria sair nada para Pernambuco naquele sábado.

Mas há vários fatores que influenciam uma partida de futebol. E o Corinthians, velho freguês do Sport, deveria ter se lembrado disso antes de descer em Pernambuco com a arrogância paulistana que lhe é peculiar.

Foto: ge (MarlonCosta/Pernambuco Press)


Porque começou a partida e foi uma carnificina. Ninguém segura uma besta desenjaulada. O Sport calmo, frio, sereno, de uma serenidade psicopata, de uma frieza assassina, de uma calmaria de filme de terror. O Corinthians não se encontrava em campo e, por outra, aquele campo não era mesmo o lugar dele. Sim, amigos, a Arena Pernambuco rejeitou o Corinthians desde o primeiro minuto em campo. Basta ver como o time não conseguia desenvolver os lances, evoluir as jogadas, chegar até o adversário. Parecia que o Corinthians jogava não sobre um gramado, mas sobre um campo de espinhos, sobre uma vegetação densa e fechada que a todo momento se enroscava por suas pernas e o impedia de avançar.

Já o Sport estava em campo aberto, horizonte limpo, verdadeiro Rei da Selva dominando, imponente, a grama verde de São Lourenço da Mata. Já no primeiro campo abriu o placar, com um golaço de cabeça, logo em seguida anulado por um desses erros grotescos de arbitragem que nos fazem sinceramente perguntar para quê é que existem auxiliares nos campeonatos -- se, quando aparecem, marcam esses impedimentos sem pé nem cabeça. Mas nem mesmo isso abalou a moral do Leão, que seguiu dominando o jogo como se a arbitragem fosse, tão-somente, apenas mais um jogador alvinegro contra quem se tivesse que bater.

E, ao final, o gol, a glória. Belíssima tabelinha de Marcão com Mikael na entrada da grande área; depois Paulinho Moccelin recebe a bola do lado esquerdo, livre como um anistiado, leve como um quadro de Monet, solto como uma besta selvagem saltando sobre a presa. Foi um chute metódico, melódico, meteórico: meus amigos, naquele chute estava todo o eco do grito do gol contra o Grêmio de duas rodadas atrás. Eis a verdade: o Sport venceu o Corinthians lá em Porto Alegre. Aquele primeiro gol após dois meses de jejum foi um gol titânico, um gol com que se dava para vencer vários jogos. E estamos vendo, nas últimas partidas, os revérberos da Arena do Grêmio.

O Leão está imbatível. São seis gols em três jogos -- e isso sem contar o gol anulado de Sabino. É o único time do Brasileirão que conta, atualmente, com três vitórias seguidas. A fera está desembestada, infrene, em sua melhor forma. Que venha o Cuiabá.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Ninguém é mais vivo do que quem quase morreu

Dizem que a morte ensina. Ou melhor: estar diante da morte faz você encarar a vida com outros olhos. Ninguém vive tanto como quem já esteve morto. Quando o moribundo, já nos estertores da morte, decide levantar a cabeça, e lutar, e viver, aí, meus amigos, já não há mais nada nem ninguém no mundo que o possa segurar. A morte respeita quem a olha nos olhos e a enfrenta de cabeça erguida. Não existe ninguém mais vivo do que quem quase morreu e voltou.

O Sport esteve à beira do túmulo neste campeonato. O que digo? Esteve dentro do caixão já descido à terra. Já começavam a despejar melancolicamente, uma após outra, fúnebres pás de terra sobre a madeira vermelha e negra. Ninguém acreditava mais no Sport e, por outra: todos acreditavam na Série B. Até os times menores do ecossistema pernambucano -- a minhoca do canal e a catita da Rosa & Silva -- esqueciam-se da sua insignificância no enterro do Leão. Parecia que seu raquitismo esportivo, seu nanismo futebolístico, podiam ser deixados de lado no velório do adversário. Uma coisa assombrosa, os tricolores e os alvirrubros, dois defuntos desenterrados, trocando conversas de comadres junto ao Leão caído.

Houve um momento em que o time não suportou mais a humilhação. Sim, meus amigos, a verdade é esta: quem nasceu para Rei da Selva não aceita ser tratado como minhoca colorida ou gambá assustado. Dizem que a camisa pesa, o que é uma verdade, mas é preciso dizer ainda mais: a camisa levanta. O manto põe-se de pé. A tradição empurra para frente.

Falei aqui do gol de Gustavo, contra o Grêmio. Disse que não era um simples gol, que era uma profecia, um vaticínio. A vida da gente às vezes sofre reviravoltas por causa de um evento inesperado: golpes de sorte nos jogam por terra ou nos lançam aos ares. Sim, meus amigos, aquele gol mudou tudo. Ali, naquele balançar de redes, a besta enjaulada foi libertada e agora será difícil aos seus inimigos contê-la novamente. Agora é o poder e a hora do Leão. 

Foto: ge (Marlon Costa/Pernambuco Press)

Veja-se com que facilidade o Sport atropelou o Juventude ontem. Foram três gols em cima do visitante com uma fúria, com uma brutalidade que poderia parecer um exagero. Alguém disse que foi uma crueldade, uma humilhação desnecessária; meus amigos, a fera acorrentada há muito tempo não mede a sua força quando se põe em liberdade. Eis a verdade: o Leão está em frenesi, com gosto de sangue na boca, com os machucados do início do campeonato empurrando-lhe para adiante. A fera está cega de dor e de raiva contidas, em fúria assassina, estraçalhando quem quer que apareça na sua frente.

É até difícil escolher um lance do jogo para comentar. Mas seria uma indignidade não falar, aqui, do segundo gol do Leão, do golaço de Mikagol. O homem correu para a área como um náufrago corre para a praia. Olhava para a bola como quem perscruta o mar infinito no horizonte. Viu-a chegando com a euforia de um Robson Crusoé na iminência do resgate; e mandou-a para dentro da rede como um Tom Hanks sujo e ferido arremessando, furioso, Wilson para longe de si. Que bomba, meus amigos, que lance, que gol. Ali não falou a sorte nem a técnica, foi um lance de sobrevivência. Ali falou mais alto o instinto. Ali se operou o resgate. Ali o homem venceu.

Foram cinco gols em dois jogos após dois meses sem gols. A fera está solta de novo pelos campos brasileiros. Os adversários que se cuidem. O campeonato apenas começou.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O gol que prenuncia a glória

O grande problema da paralisia é o ciclo vicioso que ela inaugura. Os músculos parados enrijecem, atrofiam; e uma musculatura atrofiada e rija tem baixa mobilidade e não se move como deveria. O fenômeno, que é conhecido há séculos pelos médicos e fisioterapeutas, verifica-se também, e com assombroso paralelismo, no futebol. Quanto mais um time perde, mais difícil lhe é voltar a vencer.

Porque a derrota e, mais ainda!, a sequência reiterada de derrotas provoca no time uma atrofia moral ainda mais grave do que a atrofia física. Sim, meus amigos, um paralítico que volta a andar depois de dois anos é menos assombroso do que um time que volta a vencer após dois meses. O milagre, no caso do futebol, é um portento ainda maior.

Foto: ge (Marcelo Oliveira/Futura Press)

O Glorioso estava nesta situação: não ganhava nada há oito jogos. Não marcava um gol -- um mísero gol! -- há oito partidas. Meus amigos, o futebol tem seus tempos próprios. Ninguém lembra o que aconteceu oito partidas atrás -- é como se fosse a infância profunda, a pré-história, o paleolítico do campeonato. Somente especialistas conseguem discorrer sobre o que ocorreu há um lapso tão grande de tempo: para o povo comum, para o chão-de-fábrica, o futebol que se comenta nos cafezinhos e que se discute nos bares é o do último fim de semana. No máximo, da semana passada, de quinze dias atrás. Mais do que isso, meus amigos, é outro mundo, é o pré-cambriano. Gerações de rubro-negros já se sentiam, assim, como se nunca tivessem visto seu time ganhar. Parecia que crianças haviam crescido sem jamais ver um gol do seu time. A situação estava deplorável.

Mas ontem tudo mudou. Ontem, jogando contra o Grêmio, lá na casa do adversário, os ventos começaram a soprar diferente e a sorte do time se transformou. Ontem se viu mais uma vez toda a beleza do Leão em fúria -- imponente, senhor-de-si, destroçando altivo quem estivesse à sua frente, estraçalhando os adversários com suas presas imortais. Ontem o Leão se fartou de churrasco nas terras gaúchas. E, agora, bem alimentado, pode recuperar o território perdido.

Porque o primeiro passo é sempre o mais importante. Para o maratonista acamado, a primeira vez em que ele se põe de pé sozinho é mais importante do que os primeiros quilômetros corridos após a doença. Uma vez que consiga se levantar -- uma vez que mostre a si mesmo não estar morto, paralítico e nem aleijado --, o atleta sabe que voltar aos pódios é apenas uma questão de tempo: o mais difícil ele já fez. A recuperação moral antecede e anuncia a recuperação física.

E ontem a moral rubro-negra se redescobriu. Ontem, após dois meses, um grito de gol se elevou da garganta de vinte e dois milhões de rubro-negros. Meus amigos, aquele gol, sozinho, foi toda uma goleada. Nunca um gol foi tão comemorado e digo ainda: o gol que balança uma rede após um tempo tão grande tem algo de místico, de sobrenatural, de pressagioso. A história nos mostra que este é o gol que prenuncia a glória.

Sim, meus amigos, aquilo não foi um simples gol. Foi uma profecia, um vaticínio. Um murmúrio antigo, de heróis de um passado longínquo e que já se acreditava enterrado, levantou-se ontem em Porto Alegre e se fez ouvir tonitruante por toda a terra. Forças profundas, ancestrais, selvagens foram liberadas ontem à noite, e agora é só deixá-las correr. O mais difícil já foi feito. Agora o Glorioso reencontrou o caminho da vitória e já pode voltar a sonhar com as alturas a que pertence por natureza, história e mérito.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

A final do Pernambucano não pode ser o fim do Futebol

A vitória do Náutico sobre o Glorioso na noite de ontem foi mais um desses fatos banais que, vistos em conjunto, devidamente contextualizados, sinalizam a grande crise do futebol. E todos sabemos que a crise do futebol é a própria crise do homem e da civilização -- e quando o esporte se barbariza é a História que desmorona.

Tudo começou algumas semanas antes, quando um conselheiro rubro-negro teceu alguns comentários ofensivos a determinado torcedor do Sport que havia ganhado notoriedade nacional à conta da sua manifesta homossexualidade. Ora, o referido torcedor é digno de todo o respeito e consideração, sem a menor sombra de dúvidas, em primeiríssimo lugar por ser humano e, em segundo lugar, por ser, dentre os humanos, pertencente à casta mais nobre e mais esclarecida, a mais digna e a mais evoluída: a dos milhões de torcedores do Glorioso Leão da Ilha do Retiro. Isso, por si só, já deveria encerrar o assunto.

Mas, não. Os bárbaros assolam o futebol com suas mentes tacanhas, senhoras e senhores, e hoje é muito difícil fugir deles. Transformaram o episódio em um ato de "homofobia" e resolveram promover "reparações" ao dito torcedor -- não pelo fato de ele ser humano, não pelo fato de ser torcedor do Sport, mas, vejam só, pela casualidade das suas preferências sexuais. Pintaram arcos-íris na Ilha do Retiro, conspurcaram o sagrado gramado com alegadas "danças" de qualidade animalesca. Fizeram um verdadeiro circo em cima de uma coisa séria e desrespeitaram e ofenderam, pela segunda vez, a dignidade do pobre torcedor -- a quem desde já prestamos nossa solidariedade. Gil do Vigor, saudações rubro-negras! Este colunista lamenta toda esta deplorável situação.

Não se diga nada contra as lutas identitárias, que têm a sua razão de ser e devem ser levadas a efeito por quem a elas se dedica com sinceridade. Mas o futebol não é e nem pode ser espaço para disputas políticas de nenhuma natureza, por uma razão muito simples: as cores dos times galvanizam paixões gregárias que transcendem absolutamente as características individuais dos torcedores. Dói ter que explicar o óbvio, mas é assim: debaixo do bandeirão da Jovem não existe nem pobre nem rico, nem ladrão nem policial, nem homem nem mulher, nem negro nem branco, nem nada disso: debaixo dos gritos da torcida organizada estão todos irmanados sob o vermelho e o negro no qual Stendhal se inspirou para narrar a sua história de ascensão social. E é assim com todo futebol. É este o papel civilizacional que o esporte realiza: ele reúne os diferentes e os iguala, irmãos, sob uma mesma camisa.

O futebol, senhoras e senhores, não é um esporte identitário, e isso é óbvio. Nós não assistimos aos jogos para nos identificar, em nossas individualidades, com os jogadores que entram em campo. Os brancos vibraram com as jogadas de Edson Arantes do Nascimento, um negro; os abstêmios comemoraram os lances de Diego Armando Maradona, um conhecido cocainômano. O que torna Messi admirável pelos autistas e pelos não autistas é o seu futebol, e não o seu TEA. E as mulheres assistem, com gosto, com garra, com paixão, o futebol masculino muito mais do que o feminino. Futebol não tem nada a ver com desrespeito de classe, de sexo, de gênero; quem não entende isso não sabe o que é futebol e também não sabe o que é respeito. 

Mas o Sport não soube dar essa resposta firme, óbvia, quando ela foi exigida pela horda de bárbaros que pedia a cabeça do Flávio Koury. Ao contrário, preferiu gaguejar e ceder espaço, dessacralizando o futebol -- levantando bandeiras estranhas e cantando músicas profanas dentro de um templo sagrado onde as únicas bandeiras que podem ser hasteadas são aquelas que envergam as cores do time, e onde os únicos hinos que podem ser entoados são os gritos de guerra da torcida. Deu no que deu.

Foto: JC Imagem

Na final do Pernambucano, nos pênaltis, o VAR mandou o Náutico bater de novo um pênalti que Maílson havia defendido. Gol. Marquinhos era o próximo a bater. Indignado, o meio-campista deve ter pensado em todas essas coisas, na decadência do futebol, no rebaixamento de um esporte sério e milenar às categorias de "lacração" e de "cancelamento" dos bárbaros contemporâneos. Viu tudo isso em um átimo e chutou a bola pra fora, com força, com raiva, como uma catarse, e naquele pênalti perdido estava toda uma desforra contra uma situação artificialmente insuportável. Náutico campeão. Parabéns aos últimos vinte e quatro alvirrubros, que há mais de cinquenta anos não viam uma coisa assim acontecer. A torcida deles não sabia nem o que fazer.

Que o futuro nos torne de volta à razão e nos reserve dias mais luminosos. Que os verdadeiros amantes do futebol não permitam que um esporte tão venerável chegue ao fim dessa maneira. Que os próximos campeonatos sejam melhores.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Ponto de inflexão

As mais duras operações de guerra são as de reconhecimento. O difícil não é abater um inimigo em combate: o difícil é fazer uma incursão em terreno adversário para avaliar a força do inimigo -- e, claro, compará-la com as suas próprias forças. A luta em campo aberto pode ser brutal, mas ao menos é sincera. Por sua vez, o reconhecimento do campo inimigo é estratégico, nebuloso, dissimulado. E pode ser trágico.

Mas é necessário. Há momentos em que não adianta avançar loucamente, de olhos vendados, alternando golpes cegos com passos em falso. É preciso parar e respirar, e olhar com calma ao redor, e traçar uma estratégia de ação -- mesmo que isso signifique abrir espaço para o bombardeio adversário. Sim, meus amigos, por vezes há mais heroísmo em resistir do que em atacar. Basta uma Batalha do Marne para vencer a Guerra.

No último sábado o Sport encarou o Atlético com uma moral mais baixa que a dos soldados franceses sob invasão alemã. O Leão vinha de quatro derrotas seguidas: perdera em casa como perdera fora de casa, perdera de times acima na tabela como de times abaixo na tabela. Só fazia perder. Nem se reconhecia o Glorioso Leão da Ilha debaixo da roupagem esfarrapada de derrotas e derrotas e derrotas e mais derrotas acumuladas nas últimas rodadas do Brasileirão. O Galo, cacarejando com a crista erguida em seu terreiro, já estava contando com os três pontos da noite.

Mas ele não contava com os reveses do futebol, que são mais frequentes e emocionantes que os dos grandes conflitos bélicos. O Mineirão esperava liquidar os rubro-negros; no entanto, foi forçado a testemunhar o nascimento de um herói. De um virtuose. De uma lenda.

Foto: Facebook (@luanpolligk)

Meus amigos, havia algo de sobrenatural naquele sábado. O Atlético apresentou a mais incontestável superioridade técnica e estatística sobre o time visitante: teve mais passes acertados, menos faltas, mais posse de bola, mais ataques. E mais, infinitamente mais chutes a gol. Parecia bruxaria: a bola só procurava a rede rubro-negra. Dava a impressão de que não foram somente duas vezes, nem vinte, nem duzentas, mas umas duas mil vezes em que os chutes foram disparados contra o gol do Sport. Parecia que havia umas dez bolas em campo e uns vinte jogadores do Atlético disparando ao mesmo tempo contra um homem sozinho.

Este homem era Luan Polli e foi a grande estrela daquela noite.

Ninguém acreditava que ele seria capaz de segurar tantos ataques por tanto tempo: diante dele estava o melhor ataque do campeonato! Mas o homem se mostrou uma verdadeira muralha, um paredão, uma Bastilha inexpugnável. Foram centenas e centenas de chutes, capazes de colocar Paris inteira abaixo; mas o gol rubro-negro permaneceu hígido, íntegro, incólume. Nada passou pelo camisa 27. E, quando soou o apito e a poeira baixou, o homem estava de pé em meio aos escombros. O Galo arregalou os olhos, abaixou a crista e foi chorar no galinheiro.

Meus amigos, a partida daquele sábado foi um verdadeiro ponto de inflexão. As últimas derrotas do Sport parecem agora coisa pequena e sem importância diante do heroísmo solitário de Luan Polli diante do Atlético. Agora a má fase é coisa do passado. Agora é hora de o Leão voltar a reinar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Adeus a Sander

Meus amigos, dizem que o arroz está caro. Mas o gênero alimentício que quase não se encontrava em Recife neste domingo era a carne suína. Graças a uma bonita tradição de comer porco em determinados dias do ano, vinte e um milhões de rubro-negros abasteceram as suas dispensas para a festa da noite. E não havia coronavírus capaz de abater o ânimo do Sport -- que jogaria em Casa, na Ananias Arena, contra um dos seus mais tradicionais fregueses. Nenhum torcedor esperava menos do que a vitória. A carne começou a ser servida já no almoço. Houve registro de alguns rubro-negros que começaram a comer porco inclusive no café da manhã. Foi um carnaval.

Eis o que quero dizer: ontem, o jogo não havia nem começado e as comemorações já corriam soltas. O futebol, meus amigos, é um esporte de poucas verdades. Entre as quatro linhas há muito espaço para o improviso, para a surpresa, para os caprichos do Acaso, e é isso o que torna o esporte tão emocionante. Somente umas poucas coisas são certas no futebol: coisas como "quem não faz, leva", ou "o jogo só termina como acaba", ou ainda "o Palmeiras é freguês do Sport".

Mas mesmo essas coisas básicas só são verdadeiras na generalidade dos casos. Há aquelas situações raras em que o time não faz mas também não leva, há vezes em que o jogo termina antes de acabar. E há até alguns casos, esses raríssimos, em que o porco consegue escapar das garras ferozes do Leão.

São momentos terríveis e que exigem uma severa autocrítica. Afinal, triste é a situação do time que não consegue bater nem o freguês! Se o Leão se atrapalha pra cravar as presas até num bacurim, corre verdadeiro risco de terminar morrendo de fome. A noite de ontem, que deveria ser de fartura, terminou mirrada. São pontos que vão fazer falta. Aquele empate chocho de ontem deixou a torcida rubro-negra insatisfeita -- tão insatisfeita como nem mesmo outras derrotas recentes conseguiram deixar.

Foto: OneFootBall

E, neste jogo, a atuação de Sander merece um comentário particular. O lateral-esquerdo deu um gol de graça para o Palmeiras, sim; mas a culpa não foi somente dele e, verdade seja dita, ele até tentou, depois, reparar seu erro. Meus amigos, aquele lance foi escandaloso. É o tipo de falha que desperta paixões homicidas, que encerra prematuramente carreiras, que atrai a indisposição até dos amigos. Até dos familiares. Aposto que a própria mãe do atleta, se visse um lance daqueles, daria no moleque uma chinelada. Após passar a bola para o atacante adversário, sozinho, de frente para o gol, Sander deve ter se sentido o mais infeliz dos homens.

Mas eu dizia que a culpa não foi somente dele. Ora, impossível negar que o problema é, também, a diretoria: se o jogador já disse que não tinha mais interesse em permanecer no time, a coisa mais sensata a fazer é deixá-lo ir embora desde já. Desde agora, desde ontem. Não se mendiga a presença de um atleta que não quer jogar no time, que não tem respeito, consideração, pela camisa que veste. Coagindo o sujeito a jogar, insistindo, bajulando, adulando, chantageando, ou o que seja, corre-se o risco de ter em campo um jogador fazendo corpo mole -- ou, pior, fazendo o jogo do adversário.

Não acho que Sander tenha querido dar o empate para o Palmeiras; o problema é que do corpo mole para o fogo amigo a diferença é pequena e o passo é curto. Às vezes, involuntário. Meus amigos, Sander enlouqueceu após dar aquele gol: disputava cada bola como se fossem mantimentos em zona de guerra, perseguia os adversários como se fosse um pervertido. E abatia cada atacante como se fosse um açougueiro correndo atrás de um leitão que houvesse fugido do matadouro. Em uma dessas foi expulso, mas lavou a alma. Sim, meus amigos, aquele cartão vermelho foi uma última auto-punição, o derradeiro golpe auto-infligido, a catarse extrema. O homem estava louco e se abateu antes de ser abatido. Está morto, uma salva de tiros e sigamos adiante.

Aquela expulsão encerrou a etapa inicial e revigorou o time. Parecia que a fera se livrava enfim de um peso morto. O segundo tempo foi todo para o gol de Lucas Mugni -- um gol de tirar o fôlego, categórico, plástico. Não ganhamos do freguês, mas contemplamos a imolação de Sander e fechamos o domingo com um belo grito de gol explodindo da garganta. Que ele exorcize de vez a má fase e possa ser ouvido mais vezes nas próximas rodadas.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O Olimpo do futebol

Em nossos dias é cada vez mais comum ver pessoas celebrando a sexta-feira. Afinal, trata-se do dia que marca o início do fim-de-semana, quando as ocupações do quotidiano dão lugar aos merecidos descansos do sábado e do domingo. A verdade é que o homem não é homem sem os seus pequenos prazeres inconfessáveis, sem as veleidades do homem comum -- que as tem sem nem lhes ser capaz de nomear. Se é verdade que o trabalho enobrece, não é menos verdade que o só trabalho embrutece. É apenas da natureza bruta que se pode esperar uma constância indefinida; o homem, cada homem, comporta em si maior complexidade que no resto inteiro da Criação.

Somente o homem poderia ter inventado o tédio. Dizem que os gregos pintaram os seus deuses com todos os vícios humanos; isso é uma meia verdade. Se você reparar bem, não há tédio entre os Olímpicos, e isso não somente por causa das diabruras que somente os deuses, por serem deuses, são capazes de fazer. Não é apenas isso. O mais impressionante poder de Zeus não é o de se transformar em cisnes e touros para seduzir donzelas; o que assombra, o que é sobre-humano, é que ele jamais se canse de mandar chuva sobre a Hélade.

E não se trata de um fenômeno isolado, reservado talvez à majestade do Rei dos Deuses. É uma constância universal. Apolo cavalga sobre os céus, do Oriente ao Ocidente, todos os dias, sem que se tenha registro de uma vez sequer em que o sol tivesse deixado de nascer por incúria do jovem Febo. Caronte atravessa o Estige de uma margem à outra o tempo inteiro, desde que o mundo é mundo, sem que jamais o Reino dos Mortos tenha deixado de ser o recalcitrante destino da peregrinação dos mortais. Eis o que quero dizer: Hélio não pára e o Hades não fecha. Ora, nenhum homem no mundo seria capaz de desempenhar essas divinas tarefas, não por elas serem grandiosas demais, mas simplesmente por serem por demais tediosas. Privem-se os homens dos domingos e feriados, e rapidamente se verá uma convulsão social de fazer a expulsão dos Titãs parecer um desentendimento de comadres.

E é esta a força que se encontra por trás das últimas duas partidas do Sport, este poder insaciável desconhecido até mesmo dos antigos deuses: o tédio. Sim, meus amigos, o tédio pode por vezes chegar ao limite do insuportável. Afinal, nenhum time de verdade consegue perder indefinidamente: chega um momento em que ele simplesmente se cansa de apanhar, da mesma maneira que um operário de fábrica não consegue apertar porcas vinte e quatro horas por dia. Há limites para tudo nesta vida. Uma hora explode a revolta.

E ela veio. Primeiro foi o Grêmio, na quinta-feira, longe de casa, abrindo antecipadamente os festejos do final de semana. Os primeiros trinta minutos de jogo foram a melhor meia hora do Sport em campo, desde o início do campeonato e eu diria até mais: desde o ano passado, talvez desde 2017. Fazia tempo que não se via o time jogar com tanto entrosamento, com tanta raça, com tanta gana de vencer: em uma palavra, fazia tempo que não se via o Sport ser o Sport. Aquele gol de Patric logo aos cinco minutos de jogo foi o que desestabilizou o tricolor gaúcho, e foi a sorte do Glorioso: depois o Grêmio até se encontrou em campo, mas não foi capaz de fazer frente a um Leão mortiferamente entediado.

Foto: UOL.
Pedro H. Tesch/AGIF

E, ontem, foi o Goiás, aqui no Adelmar da Costa Carvalho, quem foi vítima da fúria tediosa do Sport. Havendo sentido o gosto de sangue na quinta-feira, o time estava sofrendo de violenta visão de túnel: não olhava para nada a não ser para o gol, gol, gol. Era a única coisa que importava, o único objetivo. A correnteza das revoluções tem mais força do que direção, e por vezes se volta contra os próprios companheiros no caminho: assim o Leão em frenesi, ontem, cravou três gols na Ilha do Retiro, incluído aí até um gol contra. Meus amigos, foi uma carnificina. Parecia uma Revolução Francesa cortando cabeças pelo simples prazer de ver esguichar o sangue: assim era Elton chutando a bola em direção ao gol, a qualquer gol, só pelo prazer de ver a rede balançar. Foi uma loucura.

E foi uma vitória marcante porque o time venceu inclusive os seus próprios defeitos. Venceu a má fase, emplacando duas vitórias seguidas, venceu o lanterna do campeonato (feito glorioso que, por si só, já valeria uma comemoração de final de Copa do Mundo!), e venceu até mesmo o próprio gol contra. Meus amigos, um time que pode se dar ao luxo de não se abalar com um gol contra já transcendeu o mundo dos mortais. Podem trazer o incenso e erigir os templos: com estas duas últimas vitórias, o Sport ingressa oficialmente no Olimpo do futebol.