segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O gol das quatro vitórias

As coisas nem sempre são exatamente como parecem, e no futebol como na vida às vezes os adversários contra os quais precisamos pugnar não se nos apresentam do outro lado da arena, às claras, fazendo a boa e velha guerra honesta dos barões medievais. Pelo contrário. Às vezes o verdadeiro inimigo é insidioso e se nos acerca sorrateiramente. Certos combates nós nem sabíamos que precisaríamos lutar até nos ver em meio a eles ou por outra: às vezes os outros nem vêem as lutas que estamos travando.

A ingratidão é  esta desproporcionalidade entre o esforço empenhado e o reconhecimento recebido. Ou por outra: o ingrato recebe mais do que dá, mais do que reconhece, levando ao surgimento de uma espécie de mais-valia relacional que expropria o esforçado, o comprometido, o que se importa. Acho até que, se perscrutarem direitinho, verão que é provavelmente na indiferença e não na propriedade privada que se encontra a verdadeira origem da desigualdade entre os homens.

Mas o pior é isto: o ingrato não faz por mal. Os cavalos do coche real mastigam os lírios brancos colhidos para o filho do rei sem que este tenha a menor consciência da tragédia que recende daquelas flores maceradas. Talvez Marius não ignorasse Éponine por perversidade; talvez apenas os seus olhos ofuscados por Cosette o tornassem cego a tudo o mais. Talvez Roxie Hart simplesmente não visse os esforços do seu marido para lhe tirar da prisão -- no entanto, quanta dor em Mr. Cellophane! A ingratidão é invisível porque se esconde por dentro da carne alheia; quem não a sofre não a vê.

Veja-se o Sport. Fez ontem uma das mais extraordinárias partidas do ano e mais: conquistou uma de suas vitórias mais estrondosas. Dir-me-ão que o jogo acabou em um a um; eu retrucarei que nem todas as vitórias exigem um placar positivo. Ora, o Leão foi vitorioso porque lutou de uma vez só não apenas contra um, mas contra quatro adversários simultaneamente lançados contra si.

Foto: ESPN

Lutou contra o Internacional e foi a luta que todo mundo viu. Mas precisou lutar também, antes mesmo de entrar em campo, contra o desfalque do seu próprio elenco. Diego Souza e Rogério, contundidos, não poderiam jogar; e a luta contra as próprias limitações é, sempre, a mais encarniçada das lutas. Lutou, ainda, contra a arbitragem, que fez questão de iniciar o jogo dando um a zero para o time gaúcho, de graça, marcando um pênalti que ninguém viu. Tivesse Seijas dado um mortal circense dentro da área e o pênalti não seria mais pateticamente marcado. O placar já começou, assim, em desvantagem para o Leão. Mas o Sport lutou também, e foi a luta talvez mais cruel, contra a torcida rubro-negra.

Qual o público na Arena Pernambuco? Cinco mil torcedores? Ora, dezoito milhões de rubro-negros, e apenas cinco mil comparecem ao jogo? A um jogo aqui em Pernambuco? A punhalada é por demais dolorosa -- a ingratidão, onde medra, sufoca. A indiferença machuca, aniquila, destrói: e como pode o clube jogar na sua própria casa se os seus próprios torcedores, desempenhando o papel do desprezo, recusam-se a ver o time jogar? A torcida, cansei de dizer, é a mulher do time. Que homem não se esforça por ser melhor quando sabe estar sob o escrutínio daquela que deseja? E, a contrario sensu, como pode o cavalheiro cortejar a dama que não se encontra presente?

Lutando contra tantos adversários ao mesmo tempo, qualquer time teria sofrido uma goleada. Foi até covardia. A despeito de tudo isso, contudo, o Leão não se deixou desanimar. Ergueu a cabeça e lutou contra o time gaúcho e contra o desfalque do próprio time, contra o sr. Grazianni Maciel Rocha e contra a própria torcida rubro-negra. Contra todos e contra si mesmo chegou ao gol no final da etapa complementar e eu digo: jamais se viu um gol tão suado! Foi um gol e quatro vitórias em um chute só. Jamais foi tão grande o mérito de enfiar uma bola por sob a trave adversária. Naquele rede balançada Vinícius Araújo abatia o Inter e vingava o árbitro, a natureza e a ingratidão da torcida. Merecia, sozinho, o troféu do campeonato.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A escolha do Leão

O que houve com o Sport? O que aconteceu com o glorioso rubro-negro, ceifado impiedosamente na sua escalada no campeonato, derrubado de maneira horrenda na sua corrida rumo às primeiras posições da tabela? Muitas teorias já foram elaboradas e ainda o haverão de ser. Uns dirão que o time ensoberbeceu-se, outros que o Botafogo jogou melhor. Comentaristas despeitados haverá dizendo que o Sport é um time pequeno e, com essa derrota, ele apenas se põe no seu lugar. Outros, mais prosaicos, dirão que é assim mesmo, que não se pode ganhar sempre, que nem mesmo Napoleão venceu todas as batalhas que travou.

Foto: Globo Esporte

Direi diferente. Direi que o problema do Sport foi o excesso de disciplina ou, por outra, a tenaz e brutal indiferença com a qual ele perseguiu a única coisa que lhe interessava no momento. O Sport, todos o sabemos, vinha se recuperando de uma campanha inglória. Esteve no Z4 -- absurdo incompreensível. Pior. Esteve no Z4 atrás do Santa Cruz. Traumas desta sorte têm o condão de abalar o time; no Sport teve o efeito de tornar todo o elenco possuído por um espírito de cachorro louco -- em corrida desvairada, insana até, abocanhando o que quer que se colocasse em seu caminho.

E assim foi o time, nas últimas rodadas, em sua fúria sagrada, em sua sede de sangue, estraçalhando quem quer que estivesse em sua frente. A chacina foi horrível e por outra: o Atlético, o Grêmio, o Flamengo precisarão de muitas rodadas ainda para se recuperarem da devastação. Foi uma carnificina de fazer as páginas das gazetas esportivas pingarem mais sangue que o caderno policial. Desde o saque de Constantinopla que não se via uma devastação assim.

Mas não foi suficiente. Mesmo assim não foi suficiente e o time, que chegou a respirar no G10, não logrou estabelecer-se lá com a solidez que a nação rubro-negra exigia. Veio então a partida contra o Botafogo. Era vencer ou vencer; a vitória era o único resultado que importava e, portanto, foi a este objetivo que os onze jogadores se devotaram com todo o ardor de suas chuteiras. O objetivo era nobre, o desempenho, correto. Todo o problema foi aquela falha no gramado.

Acréscimos do primeiro tempo. O time carioca avança. Desvencilha-se da zaga e chuta -- um chute mesquinho, burocrático, protocolar. O legítimo chute operação-padrão. A torcida não chegou nem mesmo a prender a respiração e foi essa a sua ruína.

Entre o gol e o jogador, sabíamos todos, havia uma bastilha inexpugnável, havia Magrão indefectível. Magrão semideus descido do Olimpo pelo qual não passa nem bola de gude. Mas se os deuses do Olimpo são caprichosos, muito mais o são as Moiras que tecem as tramas do futebol. Entre Magrão e a bola havia, imperceptível e traiçoeiro, pérfido e falaz, um montinho irregular de grama. O goleiro foi na bola, a bola foi na falha do campo, o goleiro perdeu o tempo, a bola quicou no fundo da rede. Foi tão inesperado que mesmo a torcida alvinegra demorou para gritar gol. Na França revolucionária não penetraram na Bastilha de maneira tão patética; no entanto, aquele gol nos acréscimos da etapa inicial desestabilizou a majestade leonina mais que o 14 de julho iniciou a ruína da dinastia dos Capetos.

Toda esquadra sagrada tem sua Queroneia. Ferido, o Leão lançou-se sobre o adversário, apenas para levar logo em seguida segunda estocada. O Sport não estava preparado para perder e por outra: fez sua escolha. Após o primeiro gol precisava reagir: perder de um gol, ou de três, ou de cinco, eram os mesmos pontos a menos. Eis a verdade: o Sport continuou tentando vencer, em sua teimosia cega, em sua fúria brutal, a despeito dos gols que sucessivamente ia levando. Não foram falhas da equipe: foi a disciplina de, alvejado, continuar avançando. Foi uma escolha. As grandes derrotas só são sofridas por quem se arrisca a grandes vitórias. Chamaram o time de desesperado por se lançar de maneira desabrida sobre o time da casa; tivesse o elenco virado o placar no segundo tempo, ter-se-ia transformado o desespero em garra e ousadia. As críticas seriam agora elogios rasgados.

Não, o time fez o que devia ter feito. Vítima de uma fatalidade tentou reagir. Não logrou êxito, é pena, mas ainda assim merece o apoio da torcida. As feras por vezes davam no Coliseu um belo espetáculo, mesmo quando eram abatidas. Lutando até o último minuto, avançando enquanto jorrava cada vez mais sangue, o Leão ferido no campo mineiro deu, assim, prova feroz da sua altivez.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Trinta anos de derrotas

A vitória do Glorioso no último sábado tem um gosto especial para o torcedor pernambucano. Não somente porque ela entroniza o Sport no G10, lugar a que o clube pertence por tradição e excelência. Não somente porque foi uma bonita vitória, consolidando a invencibilidade de seis rodadas na disputa. Não apenas porque foi sofrida, arrancada com garra, na raça, com um golaço de Edmilson -- para afastar o mau agouro dos que deploravam a (não obstante deplorável) saída de Diego Souza. Mas a vitória tem um sabor especial porque foi conquistada sobre o Urubu da Gávea, o carniceiro carioca, o conspurcador do sagrado manto rubro-negro.

E que partida! Dois rubro-negros se mediram e se enfrentaram. O rei da floresta venceu o rei da carniça. Edmilson enterrou a partida já no primeiro tempo -- com a fúria de um mercenário faminto, com a precisão de um toureiro experiente. Mas daí em diante nenhum dos dois times entregou o jogo. Foram ainda setenta minutos de investidas e retiradas, de chutes e defesas, de dribles sedentos e passes meticulosos. O urubu agonizava com as patas do leão sobre seu pescoço, e que agonia -- foram setenta minutos de estertores terríveis. Por vezes parecia que a ave agourenta ia conseguir escapar. Ao final sucumbiu. Sim, ao final foi o grito de guerra -- de vitória! -- da torcida do Sport que ecoou por sobre a Arena de Pernambuco

Foto: Blog do Torcedor

Mas que combate...! Duelo de morte, inimizade figadal, cujas raízes remontam pelo menos a 1987. Naquele ano, para orgulho da nação rubro-negra, o troféu do campeonato brasileiro revestiu-se de vermelho e preto. Naquele ano, para desespero e confusão dos cariocas, foi o Leão da Ilha que rugiu no mais alto do pódio.

O Flamengo não aceitou. Fez birra, fez chicana. Passou os últimos quase trinta anos fazendo chicana, e mais: nunca se viu um chororô tão intenso e tão inconformado. Um chororô de fazer frente às lágrimas de Portugal. Envergonhando as cores sagradas do uniforme que enverga, o Flamengo se humilhou e rastejou, lambendo sapatos Oxford em todas as repartições burocráticas que encontrou na sua frente. Foram quase trinta anos de rastros, e mais: parece que o time nunca mais se levantou novamente. A derrota de 87 mexeu-lhe com os brios, esta é a verdade: e a recusa à disputa honesta, no campo, na raça, fez com que o clube adquirisse uma assustadora necessidade de reconhecimento.

Perdeu na CBF. Perdeu na FIFA. Perdeu na Justiça Comum. Por onde tem andado, nos últimos quase trinta anos, o Flamengo tem colecionado derrotas de dar cada vez mais pena. A chicana megalômana, a chicana de todas as chicanas, é a situação atual, onde pretende o rubro-negro carioca que o STF, a Corte Constitucional do país, imiscua-se nas competições das Federações Esportivas e declare ter havido, em um mesmo ano, dois campeões brasileiros. Ou seja: incapaz de negar o campeonato do seu arqui-rival pernambucano, espera o time carioca -- que não jogou em 87 -- que lhe reconheçam, na canetada, um lugar no pódio onde ele não esteve. Que ele se negou a disputar.

Tudo vão. Se não houvesse coisa julgada, se pudesse o time carioca entrar novamente na Justiça quantas vezes quisesse, tantas outras vezes perderia. Perderia pela mesma razão que perdeu em 1987: porque quem não joga perde, porque os acochambrados dos bastidores não são capazes de fazer frente a um esporte que se decide dentro das quatro linhas do campo de batalha. É naquele campo verde, sobre a grama e sob o sol, que as batalhas são travadas e vencidas, onde os vencedores recebem os aplausos do público e os louros da glória. É naquele campo somente que os exércitos se enfrentam, disputando o troféu -- a taça que, caprichosa, não se deixa possuir senão por quem derrama suor e sangue por ela. É dentro de campo, em suma, que se fazem os campeões.

O Flamengo recusou o campo em 87; a taça recusa o Flamengo desde então. É esta a verdade que assombra o time carioca desde 1987. É isto que faz com que ele tema e trema a cada vez que enfrenta o Sport: vê nos olhos leoninos a sua desgraça, enxerga no manto rubro-negro a sua vergonha. A derrota da última rodada foi a reencenação de uma derrota histórica. Mais uma vez o Leão abateu o velho Urubu: naquele gol de Edmilson o Flamengo viu trinta anos de derrotas. Foi por isso que, ferida, a velha ave agourenta não conseguiu mais alçar vôo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A cota já cumprida

Há certas coisas que mesmo no futebol brasileiro são extravagantes e parecem forçação de barra. Por exemplo: dois pênaltis no mesmo jogo em favor do mesmo time. Ora, o árbitro já não é a personagem futebolística mais amada de todas; marcando duas penalidades máximas em sequência, assim, fica difícil fugir à impressão de favorecimento. E a figura do juiz ladrão é problemática no futebol. Porque existe aquela sensação, tão humana quanto saudável, de que um jogada mal feita é, ao fim e a cabo, responsabilidade de quem jogou mal. A meritocracia no futebol funciona que é uma beleza. Agora, uma jogada desempenhada com maestria, mas tolhida pelo apito -- ou pela ausência do apito -- do árbitro, aí já é uma injustiça que clama aos céus. É algo com que não se pode conformar, que come por dentro, que se fica remoendo, tirando o sono e abrindo as úlceras.

Veja-se por exemplo o último jogo do Sport. Quando Rogério avança impávido, colossal, desbaratando a defesa do Figueirense como quem espanta um enxame de moscas com um balançar de mãos, tudo isso para, ao final, explodir a bola em cima de Thiago Rodrigues: é uma frustração passageira. Xinga-se o jogador por um átimo apenas; no instante seguinte já se está torcendo pela próxima jogada.

Agora uma outra cena. Edmilson invade a área. Somente ele e o gol do Figueirense. Chuta. Perde o gol. Atrás dele, no rebote, Rogério. Rogério matador. Rogério esperança leonina. Rogério em cujas chuteiras estão concentradas todas as esperanças de dezoito milhões de rubro-negros. Rogério prestes a decidir o jogo e mais que isso: parece que está escrito nas estrelas, determinado pelos astros, que Rogério vai liderar a virada do Leão.

Nos umbrais da vitória, no entanto, no limiar do grito de gol que já ensaia a sua saída triunfal do fundo da garganta do torcedor, Rogério é cavado. Impiedosamente massacrado por trás, derrubado com uma brutalidade que o futebol jamais viu tão cínica e tão descarada. Foiçado de maneira vil e covarde, às escâncaras, nem sei como as pernas de Rogério não foram partidas em duas. Atônitos, todos olham para o juiz. O juiz, com cara de paisagem, finge que não é com ele. A bola corre pela linha de fundo -- e com ela as esperanças rubro-negras.

Eis a verdade: o juiz não marcou aquele pênalti e não o teria marcado nem mesmo que as pernas de Rogério tivessem sido quebradas em duas. Nem mesmo que o atacante tivesse sido partido no meio pela brutalidade da falta do furacão alvinegro. Não o marcou porque pensa que tem uma cota a cumprir. E eis o ridículo dessa história toda: por imaginar que já tinha cumprido a sua cota, o árbitro já estava previamente condicionado a não marcar nenhum pênalti em favor do Sport. Por julgar já ter sofrido o seu quinhão de penalidade, o Figueirense se julgava autorizado a exterminar o ataque rubro-negro, a devastá-lo, torar-lhe as pernas, sem que lhe adviesse por isso a menor punição. E até o torcedor rubro-negro, até o próprio prejudicado, por já ter obtido um pênalti em seu favor dez minutos atrás, ficou com escrúpulos de pedir -- de novo -- o pênalti claro e cristalino, o pênalti paradigmático, o pênalti que poderia constar nos cursos de arbitragem como exemplo de pênalti e que o próprio Platão, se o visse, diria estar diante de um ente exsurgido miraculosamente do mundo das essências puras. Ninguém achou devido aquele pênalti -- que, no entanto, foi talvez o pênalti mais escancarado do campeonato.

E no pênalti não marcado selou-se o empate. Cujo gosto é amargo porque se sobrepõe a uma vitória que a torcida chegou a vislumbrar. Eis a verdade: do chute desperdiçado de Rogério o comentarista esportivo não vai nem se lembrar amanhã. Mas Rogério chacinado, ensanguentado no chão, abatido como um porco, com as pernas partidas ao meio para não chegar ao gol catarinense, e todos virando o rosto para o outro lado, e todos fingindo não ver -- essa imagem haverá ainda de nos assombrar por muito tempo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Não se faz isso com a torcida

Certas coisas não se fazem com o torcedor: bicho caprichoso, precisa ser tratado com mimos e atenções. Não é verdade que ele tenha um amor desinteressado, gratuito, quase platônico para com o seu time. A verdade é que é o contrário: o torcedor tem uma mesquinha relação de interesse com o clube. Está disposto a gritar no estádio, contanto que o time retribua com uma bonita apresentação; paga a camisa e faz propaganda do clube, desde que ele faça a sua parte e realize uma boa campanha.

Já escrevi aqui que o torcedor é como a mulher. Resgato a metáfora e complemento: por conta disso, ele precisa ser agradado. Quando o torcedor sai do trabalho, de noite, cansado, no meio da semana, pega a família, se dirige ao estádio, compra os ingressos, o refrigerante e o galeto, ele espera ter este seu sacrifício recompensado com uma boa apresentação do time. Pode até ser que ele não tenha coragem de o dizer com todas as letras: mas lá no seu íntimo deseja que o seu time seja o protagonista do espetáculo que vai ditar o teor das conversas pelo resto da semana.

Atenção, que isto não significa ser um mau perdedor e só querer que o time ganhe. Evidentemente o elenco não precisa ganhar o tempo inteiro; mas precisa, sim, jogar, jogar bonito, jogar se esforçando, jogar dando o melhor de si -- ou ao menos convencendo os espectadores de que está dando o melhor de si. A mulher não precisa que o seu homem seja exitoso em todas as suas empreitadas; mas ela exige, sim, que ele se esforce. Uma mulher pode passar fome ao lado de um homem que saia todos os dias em vão para procurar emprego; mas a mesma mulher vai expulsar de casa o sujeito que não se levanta do sofá, ainda que o lar esteja em condições econômicas confortáveis. No amor e no futebol é o esforço e não o resultado prático o que satisfaz.

Aquilo que o time do Sport fez com a sua torcida ontem não se faz com a mulher nem com a amante, não se faz com uma empregada nem com uma vulgívaga. Uma sequência de três vitórias consecutivas não pode ser interrompida com uma derrota em casa; principalmente, não pode ser interrompida com uma derrota para o último colocado do campeonato. Todo torcedor rubro-negro conhece o carma do lanterna; mas um elenco destruidor de tabus e exorcizador de maldições não pode sucumbir diante do fantasma da última colocação.

Ou melhor: pode até cair, mas precisa cair lutando. A torcida admite a conspiração cósmica, a reunião das bruxas, o azar de marreco; o que não admite é a cabeça baixa diante do destino fatídico. Por mil vezes o time pode ser humilhado pelo lanterna; mil vezes a torcida condescende, contanto que a cada uma delas os jogadores mostrem estar deixando nacos de carne e poças de sangue pelo campo. O que a torcida não admite, nem uma única vez sequer, é o time perder porque não jogou.

Ontem o Sport passou quase o jogo inteiro perdendo sem jogar. Dir-se-ia que o Coelho ganhava por W.O. na casa adversária. Nada daquilo se admite. O trabalhador que vai cansado à Ilha não é digno de ser tratado com tamanho desdém. O pai de família que leva seu filho ao estádio não merece que lhe façam -- ao seu filho! -- uma vergonha dessas.

Somente nos últimos estertores do jogo, já esgotado o tempo regulamentar, Mark González pôs fim à agonia. O empate que ele heroicamente arrancou, muitos dos torcedores não viram -- decepcionados que estavam, voltando já para casa, xingando a equipe. Não se trata a torcida dessa maneira; quando menos porque a torcida sabe ser cruel. Mas na constelação de estrelas apagadas do Leão só quem brilhou no céu desta quarta-feira foi o meio-campista que entrou no segundo tempo. Lutou e lutou e lutou até o último segundo pelo gol! Que o exemplo dele contagie os seus colegas, ou melhor: que os colegas entendam que é desumano exigir tanto assim de um jogador até os últimos instantes da partida. Não se faz isso com um colega, nem mesmo com um reserva. E, decididamente, não se faz isso com a torcida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A maldição do centésimo jogo

São muitas as assombrações que povoam o imaginário popular recifense. Mesmo na capital as nossas ruas são repletas de seres fantasmagóricos. É o fantasma da menina que foi emparedada viva por seu próprio pai. É a alma penada da debutante que morreu tragicamente em sua própria festa de quinze anos. É o velho decrépito que come fígados de crianças para aliviar a sua doença. Fossem todas essas personagens sinistras reunidas em um único evento paranormal, dir-se-ia um festim diabólico para Hitchcock nenhum botar defeito.

Estas nossas lendas, nós as alimentamos e mantemos vivas porque elas justificam os nossos fracassos e as nossas frustrações. Ser assaltado por um trombadinha chega até a ser censurável; dar de cara com o temível Boca-de-Ouro ao dobrar uma esquina, aí já é um embate que foge às nossas forças naturais. Enfrentar um moleque de rua é algo de que um homem honrado não pode fugir; escapar da Perna Cabeluda, aí já é proeza de que herói algum jamais conseguiu se gabar. E, claro, fazendo par a esses seres fantásticos há toda sorte de azares, mandingas e maldições -- todos com a mesma taumatúrgica missão de justificar nossos malogros. Pode parecer que o sobrenatural nos condena, mas é o contrário: o sobrenatural nos redime.

Por conta disso há quem busque espectros para justificar as derrotas. Mas há também quem desafie os fantasmas para coroar as vitórias.

Diego Souza completou no sábado o seu centésimo jogo com a camisa rubro-negra no meio de um redemoinho de grandes expectativas. Havia, uivante, a maldição do centenário a lhe assombrar. A camisa 100 não dá sorte e, por outra, serve até de desculpas prévias para eventuais más apresentações. O centésimo jogo, todos sabem, é como um encontro fortuito com algum demônio noturno. Tudo se explica, tudo se desculpa, tudo se perdoa nesses grandes marcos futebolísticos.

Mas para Diego Souza nada disso estava em consideração. O prodigioso meio-campista ri da má sorte e, orgulhoso, altivo, veste a camisa 100 como quem sai destemidamente à noite para caçar Cumade Fulozinha. O encontro com o sobrenatural é para alguns uma desculpa; para ele, é uma oportunidade. E o craque não decepcionou. Ainda no primeiro tempo deu um passe perfeito para Rogério: este, não fosse derrubado na área, certamente abriria o placar para o time da casa. Mas o ceifaram e o juiz marcou o pênalti, o que acabou não sendo um bom negócio para o time do Atlético. Diego Souza se preparou para bater.

E que pênalti...! Eu poderia, como certa mídia filo-sulista, dizer simplesmente que ele converteu a cobrança. O verbo, no entanto, ficaria muito aquém do que foi aquele pênalti cobrado por Diego Souza naquela noite sabatina. Quem me lesse, assim, não teria a clara visão do que foi aquela cobrança. O meia cobrou o pênalti de uma maneira diáfana, sublime, fantasmagórica até. Com a segurança de um artilheiro, com o domínio de si de um cossaco, com a impassibilidade de uma montanha sobre o prado.

A bola foi exatamente onde deveria ir e por outra -- parecia que uma mão sobrenatural conduziu a bola, milimetricamente, até o seu destino. No ângulo, um golaço. Um jogador normal não poderia bater um pênalti daquela maneira: no ângulo a distância do gol à trave, e da trave a fora, é muito pequena para que se possa arriscar. Mas Diego Souza não "arriscou", porque risco pressupõe alguma chance de dar errado. Ora, não havia essa possibilidade. Quem viu aquele gol sabe que não havia essa possibilidade e outra: naquela cobrança onírica a própria trave, se tal fosse necessário, teria decerto se esticado para acomodar a bola de Diego Souza no fundo da rede.

Um craque é um craque. Para ele não existe gol fácil, não existe cobrança protocolar. Todo chute é um show, todo gol é um espetáculo. Um craque de verdade come maldições com farinha. Para ele todo jogo é uma apresentação, e a centésima exibição do craque rubro-negro não poderia ser diferente. Aquela foi a noite que calou as maldições e impôs silêncio às assombrações recifenses. Para ver Diego Souza jogar os próprios seres sobrenaturais da cidade quedaram-se em silêncio, na arquibancada da Ilha, boquiabertos e assombrados.