segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Os moinhos de vento

Meus amigos, o jogo de ontem foi uma coisa tremenda. Aquele gol sofrido de pênalti, nos últimos minutos de jogo, lançou uma verdadeira ducha de água fria sobre a torcida rubro-negra. As pessoas veem com má vontade, como se fosse negligência do time ou desrespeito com o torcedor, ou como se a recente derrota, sofrida já no início do campeonato, tivesse algo de agoureiro e vaticinasse uma campanha vergonhosa. Que me perdoem os fatalistas, mas para mim é muito claro que o que acontece aqui é justamente o contrário.

A derrota para o Coxa não nos deveria desanimar, muito pelo contrário. O jogo de ontem, se bem compreendido, traz presságios verdadeiramente alvissareiros.

Primeiro que perder para o lanterna do campeonato não é um descuido do elenco atual do Sport, e sim mais um elo de uma longa e dolorosa tradição rubro-negra. Todo santo ano o Sport perde para o lanterna; na verdade, não me recordo de um ano sequer em que o fenômeno não se tenha repetido com a regularidade da revolução das órbitas planetárias. Já foi o Criciúma, o Atlético, o Ceará, até o ABC; este ano foi o Coritiba. Nisto é preciso dizer e sustentar, ao contrário dos fatalistas, que o time está, finalmente, reencontrando-se consigo próprio e reassumindo o protagonismo da sua história.

Segundo que aquela derrota não foi um massacre; foi, antes, uma fatalidade, destas vicissitudes da vida a que todos estamos sujeitos. Sim, meus amigos, aquela partida não foi uma carnificina; foi, antes, uma melancólica depressão. Um jogo decidido, de pênalti, aos quarenta e nove minutos da etapa complementar, não é nenhuma derrota fragorosa. Quase não chega a ser uma derrota. O resultado poderia ter sido qualquer outro, inclusive o oposto. Imagine-se um universo paralelo em que Sabino, em vez de sofrer aquele pênalti, houvesse quebrado as pernas de Hernane na entrada da pequena área. O jogo seria o mesmo, com a mesma performance dos atletas, os mesmos lances, tudo: apenas o placar final estaria invertido. E os vinte e um milhões de rubro-negros estariam satisfeitos. Por que, então, crucificar o time agora?

Foto: Globoesporte

Por fim, em terceiro e último lugar, porque o amargo deste revés tem o sabor de uma catarse. As pessoas dizem que os heróis nascem no glamour das vitórias; a verdade é que, antes disso, eles foram paridos em meio às dores das derrotas. Meus amigos, o Sport tem, hoje, uma oportunidade ímpar de dar a volta por cima; de sacudir do pelo majestoso a poeira da má fase e reassumir o protagonismo do futebol brasileiro a que faz jus.

Ora, não é uma derrota pontual o que sela o destino de um time. Ao contrário até: por vezes, as derrotas têm o condão de impulsionar para o alto. Dom Quixote não teria conquistado aventuras notáveis, que atravessaram os séculos!, se não tivesse começado as suas andanças com a assombrosa surra que levou dos gigantes -- que o seu arqui-inimigo, o mago Frestón, logo em seguida fez questão de transformar em moinhos de vento para o confundir. E com que perspicácia respondeu Cyrano de Bergerac, séculos depois, ao nobre que lhe lançava uma ameaça velada: "cuidado, que os moinhos derrubam ao chão quem investe contra eles". "É verdade", contrapôs o espadachim, "ou o lançam às estrelas!". 

E, naquela saída alucinada de Maílson para cima do zagueiro do Coxa, é impossível não ver Dom Quixote, airoso e desabrido, acometendo em furiosa carga contra os moinhos de La Mancha. Sim, meus amigos, não é uma queda: é um salto no espaço, rumo às alturas. Ao cavaleiro que hoje se encontra moído e quebrado no chão o porvir tem reservado as suas glórias e as suas coroas. Quem viver verá.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Vergonha da própria saúde

O coronavírus mudou os nossos hábitos. Não estávamos preparados para enfrentar uma quarentena e ainda assim ela nos foi imposta: mesmo despreparados, tivemos de a enfrentar. As pessoas estavam como loucas e a verdade é que poucos saberão dizer no futuro se se tratou de uma quarentena estendida (foram quatro meses!) ou se foi uma sequência matadora de pequenas quarentenas encadeadas. Não importa; de qualquer modo, foram dias estranhos que esmigalharam famílias, destruíram impérios e deixaram ruínas após si.

Pouco a pouco as coisas vão voltando, mas é como se as pessoas não soubessem bem como voltar. Há um sentimento de culpa generalizado. Na semana passada passei à porta de um restaurante. Antes as mesas costumavam estar apinhadas de gente jovem, conversando e bebendo e rindo animadamente; agora as mesas ocupadas por pessoas intercalam melancolicamente com as mesas ocupadas por cadeiras de pernas pra cima. E é deprimente porque há mais mesas sustentando cadeiras do que apoiando copos, pratos, talheres.

E é este o sentimento de culpa a que fiz referência acima. Ora, em tempos normais, as cadeiras colocadas em cima das mesas do bar exercem o mesmo papel social da vassoura posta atrás da porta da casa: umas e outra visam constranger visitantes impertinentes a irem embora. A mensagem que elas passam é universalmente clara: você não é bem-vindo, saia daqui, hashtag-vá-pra-casa. Mas isso, que em tempos normais sempre foi procedimento de fim de noite, hoje é a regra universal da sociedade. Os bares já abrem as portas com as cadeiras expulsando os fregueses que ainda nem chegaram. É como uma casa com uma vassoura permanentemente posta de ponta cabeça à parede da sala, a cuja vista as crianças crescem pensando que é isso o que significa ser um bom anfitrião.

A verdade é esta: o vírus deixou mais que uma pilha de corpos. Infectou-nos a alma, debilitou-nos os modos e evoluiu para óbito a nossa civilidade. Hoje nós sentimos culpa por sermos o que éramos. As pessoas têm vergonha de mostrar o próprio vigor físico; ter saúde é quase uma coisa obscena. Nas lojas, nos bares, nas praças, as pessoas estão desnorteadas -- querendo, precisando estar ali, mas sem saber como se portar. É como se estar saudável fosse ofensivo a quem está doente ou tem medo de adoecer.

E os efeitos devastadores da pandemia podem ser vistos também no futebol. Ontem foi domingo e tivemos, em ordem crescente de importância, dois grandes jogos: primeiro, a final da Champions League no Estádio da Luz; depois, Sport e São Paulo pela quinta rodada do Brasileirão na Ilha do Retiro. E em ambos os jogos vimos acontecer coisas surreais -- ou melhor, vimos não acontecer o que deveria ter acontecido, o que todos esperavam que acontecessem.

Foto: UOL

Duzentos e nove milhões de brasileiros esperaram o menino Neymar fazer um gol. Se fôssemos fazer uma pesquisa, veríamos que para a maioria deles não era nem uma questão de "se", mas de "quando". O gol de Neymar na final da Champions League era esperado não com a esperança romântica do casal de adolescentes à noite, na praia, perscrutando o céu escuro à busca de uma estrela cadente; não, aquele gol se esperava com a impaciência burocrática do trabalhador na estação esperando o metrô chegar para ir ao trabalho.

E, no entanto, para decepção dos namorados e mais horror ainda dos proletários, aquele gol não veio. Era um presságio. Já se via que a partida seguinte, a mais importante do domingo, também revelaria as suas incongruências. Foi dito e feito. 

A estrela Neymar não marcou um gol na final da Champions League e, em assombroso paralelismo, o ataque rubro-negro não furou um gol, um mísero gol, na defesa são-paulina. É o tributo pago aos tempos. Ainda sob os miasmas mal-dissipados da pestilência, as pessoas e os times estão com vergonha da própria saúde. É de pasmar. O mundo inteiro viu pela TV o choro do Menino Ney. Mas, embora o Leão tivesse sofrido um baque ainda maior, todos os vinte e um milhões de rubro-negros souberam sofrer com mais dignidade. É próprio dos sobreviventes saber que a pós-pandemia há de passar.