segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A fera está desembestada, infrene

A vitória no futebol é um conjunto de vários fatores. Há a habilidade individual, a preparação técnica, a qualidade dos jogadores, o entrosamento da equipe, o estado do campo, as condições climáticas, os torcedores, a arbitragem, o momento do time, os astros, o peso da camisa. Ninguém pode cravar o resultado de um jogo antes do fim da partida; aliás, é exatamente por isso que, nas casas de aposta, existe a loteria esportiva. O brasileiro simples há muito tempo entendeu aquilo que os comentaristas profissionais insistem em esquecer: cada jogo é uma batalha incerta, é um lance de dados, é um horizonte misterioso e incógnito no qual não se sabe o que vai se descortinar.

Veja-se o último jogo do Sport contra o Corinthians. O Leão estava na Z4 e, o Timão, na Libertadores da América. A desproporção era grotesca, infamante; parecia um pugilista bem treinado contra um moleque de briga de rua. Eis a verdade, meus amigos: existem certas situações em que a derrota não machuca tanto. Há certas batalhas que não é desonroso perder. No futebol há partidas que, perdidas, dão a sensação de se estar deixando escorrer preciosos pontos por entre os dedos da mão. Por outro lado, há rodadas das quais já se espera que não sairá nada mesmo. Essa era a opinião geral rubro-negra sobre a 24ª rodada do Brasileirão. Ninguém achava que iria sair nada para Pernambuco naquele sábado.

Mas há vários fatores que influenciam uma partida de futebol. E o Corinthians, velho freguês do Sport, deveria ter se lembrado disso antes de descer em Pernambuco com a arrogância paulistana que lhe é peculiar.

Foto: ge (MarlonCosta/Pernambuco Press)


Porque começou a partida e foi uma carnificina. Ninguém segura uma besta desenjaulada. O Sport calmo, frio, sereno, de uma serenidade psicopata, de uma frieza assassina, de uma calmaria de filme de terror. O Corinthians não se encontrava em campo e, por outra, aquele campo não era mesmo o lugar dele. Sim, amigos, a Arena Pernambuco rejeitou o Corinthians desde o primeiro minuto em campo. Basta ver como o time não conseguia desenvolver os lances, evoluir as jogadas, chegar até o adversário. Parecia que o Corinthians jogava não sobre um gramado, mas sobre um campo de espinhos, sobre uma vegetação densa e fechada que a todo momento se enroscava por suas pernas e o impedia de avançar.

Já o Sport estava em campo aberto, horizonte limpo, verdadeiro Rei da Selva dominando, imponente, a grama verde de São Lourenço da Mata. Já no primeiro campo abriu o placar, com um golaço de cabeça, logo em seguida anulado por um desses erros grotescos de arbitragem que nos fazem sinceramente perguntar para quê é que existem auxiliares nos campeonatos -- se, quando aparecem, marcam esses impedimentos sem pé nem cabeça. Mas nem mesmo isso abalou a moral do Leão, que seguiu dominando o jogo como se a arbitragem fosse, tão-somente, apenas mais um jogador alvinegro contra quem se tivesse que bater.

E, ao final, o gol, a glória. Belíssima tabelinha de Marcão com Mikael na entrada da grande área; depois Paulinho Moccelin recebe a bola do lado esquerdo, livre como um anistiado, leve como um quadro de Monet, solto como uma besta selvagem saltando sobre a presa. Foi um chute metódico, melódico, meteórico: meus amigos, naquele chute estava todo o eco do grito do gol contra o Grêmio de duas rodadas atrás. Eis a verdade: o Sport venceu o Corinthians lá em Porto Alegre. Aquele primeiro gol após dois meses de jejum foi um gol titânico, um gol com que se dava para vencer vários jogos. E estamos vendo, nas últimas partidas, os revérberos da Arena do Grêmio.

O Leão está imbatível. São seis gols em três jogos -- e isso sem contar o gol anulado de Sabino. É o único time do Brasileirão que conta, atualmente, com três vitórias seguidas. A fera está desembestada, infrene, em sua melhor forma. Que venha o Cuiabá.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Ninguém é mais vivo do que quem quase morreu

Dizem que a morte ensina. Ou melhor: estar diante da morte faz você encarar a vida com outros olhos. Ninguém vive tanto como quem já esteve morto. Quando o moribundo, já nos estertores da morte, decide levantar a cabeça, e lutar, e viver, aí, meus amigos, já não há mais nada nem ninguém no mundo que o possa segurar. A morte respeita quem a olha nos olhos e a enfrenta de cabeça erguida. Não existe ninguém mais vivo do que quem quase morreu e voltou.

O Sport esteve à beira do túmulo neste campeonato. O que digo? Esteve dentro do caixão já descido à terra. Já começavam a despejar melancolicamente, uma após outra, fúnebres pás de terra sobre a madeira vermelha e negra. Ninguém acreditava mais no Sport e, por outra: todos acreditavam na Série B. Até os times menores do ecossistema pernambucano -- a minhoca do canal e a catita da Rosa & Silva -- esqueciam-se da sua insignificância no enterro do Leão. Parecia que seu raquitismo esportivo, seu nanismo futebolístico, podiam ser deixados de lado no velório do adversário. Uma coisa assombrosa, os tricolores e os alvirrubros, dois defuntos desenterrados, trocando conversas de comadres junto ao Leão caído.

Houve um momento em que o time não suportou mais a humilhação. Sim, meus amigos, a verdade é esta: quem nasceu para Rei da Selva não aceita ser tratado como minhoca colorida ou gambá assustado. Dizem que a camisa pesa, o que é uma verdade, mas é preciso dizer ainda mais: a camisa levanta. O manto põe-se de pé. A tradição empurra para frente.

Falei aqui do gol de Gustavo, contra o Grêmio. Disse que não era um simples gol, que era uma profecia, um vaticínio. A vida da gente às vezes sofre reviravoltas por causa de um evento inesperado: golpes de sorte nos jogam por terra ou nos lançam aos ares. Sim, meus amigos, aquele gol mudou tudo. Ali, naquele balançar de redes, a besta enjaulada foi libertada e agora será difícil aos seus inimigos contê-la novamente. Agora é o poder e a hora do Leão. 

Foto: ge (Marlon Costa/Pernambuco Press)

Veja-se com que facilidade o Sport atropelou o Juventude ontem. Foram três gols em cima do visitante com uma fúria, com uma brutalidade que poderia parecer um exagero. Alguém disse que foi uma crueldade, uma humilhação desnecessária; meus amigos, a fera acorrentada há muito tempo não mede a sua força quando se põe em liberdade. Eis a verdade: o Leão está em frenesi, com gosto de sangue na boca, com os machucados do início do campeonato empurrando-lhe para adiante. A fera está cega de dor e de raiva contidas, em fúria assassina, estraçalhando quem quer que apareça na sua frente.

É até difícil escolher um lance do jogo para comentar. Mas seria uma indignidade não falar, aqui, do segundo gol do Leão, do golaço de Mikagol. O homem correu para a área como um náufrago corre para a praia. Olhava para a bola como quem perscruta o mar infinito no horizonte. Viu-a chegando com a euforia de um Robson Crusoé na iminência do resgate; e mandou-a para dentro da rede como um Tom Hanks sujo e ferido arremessando, furioso, Wilson para longe de si. Que bomba, meus amigos, que lance, que gol. Ali não falou a sorte nem a técnica, foi um lance de sobrevivência. Ali falou mais alto o instinto. Ali se operou o resgate. Ali o homem venceu.

Foram cinco gols em dois jogos após dois meses sem gols. A fera está solta de novo pelos campos brasileiros. Os adversários que se cuidem. O campeonato apenas começou.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O gol que prenuncia a glória

O grande problema da paralisia é o ciclo vicioso que ela inaugura. Os músculos parados enrijecem, atrofiam; e uma musculatura atrofiada e rija tem baixa mobilidade e não se move como deveria. O fenômeno, que é conhecido há séculos pelos médicos e fisioterapeutas, verifica-se também, e com assombroso paralelismo, no futebol. Quanto mais um time perde, mais difícil lhe é voltar a vencer.

Porque a derrota e, mais ainda!, a sequência reiterada de derrotas provoca no time uma atrofia moral ainda mais grave do que a atrofia física. Sim, meus amigos, um paralítico que volta a andar depois de dois anos é menos assombroso do que um time que volta a vencer após dois meses. O milagre, no caso do futebol, é um portento ainda maior.

Foto: ge (Marcelo Oliveira/Futura Press)

O Glorioso estava nesta situação: não ganhava nada há oito jogos. Não marcava um gol -- um mísero gol! -- há oito partidas. Meus amigos, o futebol tem seus tempos próprios. Ninguém lembra o que aconteceu oito partidas atrás -- é como se fosse a infância profunda, a pré-história, o paleolítico do campeonato. Somente especialistas conseguem discorrer sobre o que ocorreu há um lapso tão grande de tempo: para o povo comum, para o chão-de-fábrica, o futebol que se comenta nos cafezinhos e que se discute nos bares é o do último fim de semana. No máximo, da semana passada, de quinze dias atrás. Mais do que isso, meus amigos, é outro mundo, é o pré-cambriano. Gerações de rubro-negros já se sentiam, assim, como se nunca tivessem visto seu time ganhar. Parecia que crianças haviam crescido sem jamais ver um gol do seu time. A situação estava deplorável.

Mas ontem tudo mudou. Ontem, jogando contra o Grêmio, lá na casa do adversário, os ventos começaram a soprar diferente e a sorte do time se transformou. Ontem se viu mais uma vez toda a beleza do Leão em fúria -- imponente, senhor-de-si, destroçando altivo quem estivesse à sua frente, estraçalhando os adversários com suas presas imortais. Ontem o Leão se fartou de churrasco nas terras gaúchas. E, agora, bem alimentado, pode recuperar o território perdido.

Porque o primeiro passo é sempre o mais importante. Para o maratonista acamado, a primeira vez em que ele se põe de pé sozinho é mais importante do que os primeiros quilômetros corridos após a doença. Uma vez que consiga se levantar -- uma vez que mostre a si mesmo não estar morto, paralítico e nem aleijado --, o atleta sabe que voltar aos pódios é apenas uma questão de tempo: o mais difícil ele já fez. A recuperação moral antecede e anuncia a recuperação física.

E ontem a moral rubro-negra se redescobriu. Ontem, após dois meses, um grito de gol se elevou da garganta de vinte e dois milhões de rubro-negros. Meus amigos, aquele gol, sozinho, foi toda uma goleada. Nunca um gol foi tão comemorado e digo ainda: o gol que balança uma rede após um tempo tão grande tem algo de místico, de sobrenatural, de pressagioso. A história nos mostra que este é o gol que prenuncia a glória.

Sim, meus amigos, aquilo não foi um simples gol. Foi uma profecia, um vaticínio. Um murmúrio antigo, de heróis de um passado longínquo e que já se acreditava enterrado, levantou-se ontem em Porto Alegre e se fez ouvir tonitruante por toda a terra. Forças profundas, ancestrais, selvagens foram liberadas ontem à noite, e agora é só deixá-las correr. O mais difícil já foi feito. Agora o Glorioso reencontrou o caminho da vitória e já pode voltar a sonhar com as alturas a que pertence por natureza, história e mérito.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

A final do Pernambucano não pode ser o fim do Futebol

A vitória do Náutico sobre o Glorioso na noite de ontem foi mais um desses fatos banais que, vistos em conjunto, devidamente contextualizados, sinalizam a grande crise do futebol. E todos sabemos que a crise do futebol é a própria crise do homem e da civilização -- e quando o esporte se barbariza é a História que desmorona.

Tudo começou algumas semanas antes, quando um conselheiro rubro-negro teceu alguns comentários ofensivos a determinado torcedor do Sport que havia ganhado notoriedade nacional à conta da sua manifesta homossexualidade. Ora, o referido torcedor é digno de todo o respeito e consideração, sem a menor sombra de dúvidas, em primeiríssimo lugar por ser humano e, em segundo lugar, por ser, dentre os humanos, pertencente à casta mais nobre e mais esclarecida, a mais digna e a mais evoluída: a dos milhões de torcedores do Glorioso Leão da Ilha do Retiro. Isso, por si só, já deveria encerrar o assunto.

Mas, não. Os bárbaros assolam o futebol com suas mentes tacanhas, senhoras e senhores, e hoje é muito difícil fugir deles. Transformaram o episódio em um ato de "homofobia" e resolveram promover "reparações" ao dito torcedor -- não pelo fato de ele ser humano, não pelo fato de ser torcedor do Sport, mas, vejam só, pela casualidade das suas preferências sexuais. Pintaram arcos-íris na Ilha do Retiro, conspurcaram o sagrado gramado com alegadas "danças" de qualidade animalesca. Fizeram um verdadeiro circo em cima de uma coisa séria e desrespeitaram e ofenderam, pela segunda vez, a dignidade do pobre torcedor -- a quem desde já prestamos nossa solidariedade. Gil do Vigor, saudações rubro-negras! Este colunista lamenta toda esta deplorável situação.

Não se diga nada contra as lutas identitárias, que têm a sua razão de ser e devem ser levadas a efeito por quem a elas se dedica com sinceridade. Mas o futebol não é e nem pode ser espaço para disputas políticas de nenhuma natureza, por uma razão muito simples: as cores dos times galvanizam paixões gregárias que transcendem absolutamente as características individuais dos torcedores. Dói ter que explicar o óbvio, mas é assim: debaixo do bandeirão da Jovem não existe nem pobre nem rico, nem ladrão nem policial, nem homem nem mulher, nem negro nem branco, nem nada disso: debaixo dos gritos da torcida organizada estão todos irmanados sob o vermelho e o negro no qual Stendhal se inspirou para narrar a sua história de ascensão social. E é assim com todo futebol. É este o papel civilizacional que o esporte realiza: ele reúne os diferentes e os iguala, irmãos, sob uma mesma camisa.

O futebol, senhoras e senhores, não é um esporte identitário, e isso é óbvio. Nós não assistimos aos jogos para nos identificar, em nossas individualidades, com os jogadores que entram em campo. Os brancos vibraram com as jogadas de Edson Arantes do Nascimento, um negro; os abstêmios comemoraram os lances de Diego Armando Maradona, um conhecido cocainômano. O que torna Messi admirável pelos autistas e pelos não autistas é o seu futebol, e não o seu TEA. E as mulheres assistem, com gosto, com garra, com paixão, o futebol masculino muito mais do que o feminino. Futebol não tem nada a ver com desrespeito de classe, de sexo, de gênero; quem não entende isso não sabe o que é futebol e também não sabe o que é respeito. 

Mas o Sport não soube dar essa resposta firme, óbvia, quando ela foi exigida pela horda de bárbaros que pedia a cabeça do Flávio Koury. Ao contrário, preferiu gaguejar e ceder espaço, dessacralizando o futebol -- levantando bandeiras estranhas e cantando músicas profanas dentro de um templo sagrado onde as únicas bandeiras que podem ser hasteadas são aquelas que envergam as cores do time, e onde os únicos hinos que podem ser entoados são os gritos de guerra da torcida. Deu no que deu.

Foto: JC Imagem

Na final do Pernambucano, nos pênaltis, o VAR mandou o Náutico bater de novo um pênalti que Maílson havia defendido. Gol. Marquinhos era o próximo a bater. Indignado, o meio-campista deve ter pensado em todas essas coisas, na decadência do futebol, no rebaixamento de um esporte sério e milenar às categorias de "lacração" e de "cancelamento" dos bárbaros contemporâneos. Viu tudo isso em um átimo e chutou a bola pra fora, com força, com raiva, como uma catarse, e naquele pênalti perdido estava toda uma desforra contra uma situação artificialmente insuportável. Náutico campeão. Parabéns aos últimos vinte e quatro alvirrubros, que há mais de cinquenta anos não viam uma coisa assim acontecer. A torcida deles não sabia nem o que fazer.

Que o futuro nos torne de volta à razão e nos reserve dias mais luminosos. Que os verdadeiros amantes do futebol não permitam que um esporte tão venerável chegue ao fim dessa maneira. Que os próximos campeonatos sejam melhores.