segunda-feira, 24 de maio de 2021

A final do Pernambucano não pode ser o fim do Futebol

A vitória do Náutico sobre o Glorioso na noite de ontem foi mais um desses fatos banais que, vistos em conjunto, devidamente contextualizados, sinalizam a grande crise do futebol. E todos sabemos que a crise do futebol é a própria crise do homem e da civilização -- e quando o esporte se barbariza é a História que desmorona.

Tudo começou algumas semanas antes, quando um conselheiro rubro-negro teceu alguns comentários ofensivos a determinado torcedor do Sport que havia ganhado notoriedade nacional à conta da sua manifesta homossexualidade. Ora, o referido torcedor é digno de todo o respeito e consideração, sem a menor sombra de dúvidas, em primeiríssimo lugar por ser humano e, em segundo lugar, por ser, dentre os humanos, pertencente à casta mais nobre e mais esclarecida, a mais digna e a mais evoluída: a dos milhões de torcedores do Glorioso Leão da Ilha do Retiro. Isso, por si só, já deveria encerrar o assunto.

Mas, não. Os bárbaros assolam o futebol com suas mentes tacanhas, senhoras e senhores, e hoje é muito difícil fugir deles. Transformaram o episódio em um ato de "homofobia" e resolveram promover "reparações" ao dito torcedor -- não pelo fato de ele ser humano, não pelo fato de ser torcedor do Sport, mas, vejam só, pela casualidade das suas preferências sexuais. Pintaram arcos-íris na Ilha do Retiro, conspurcaram o sagrado gramado com alegadas "danças" de qualidade animalesca. Fizeram um verdadeiro circo em cima de uma coisa séria e desrespeitaram e ofenderam, pela segunda vez, a dignidade do pobre torcedor -- a quem desde já prestamos nossa solidariedade. Gil do Vigor, saudações rubro-negras! Este colunista lamenta toda esta deplorável situação.

Não se diga nada contra as lutas identitárias, que têm a sua razão de ser e devem ser levadas a efeito por quem a elas se dedica com sinceridade. Mas o futebol não é e nem pode ser espaço para disputas políticas de nenhuma natureza, por uma razão muito simples: as cores dos times galvanizam paixões gregárias que transcendem absolutamente as características individuais dos torcedores. Dói ter que explicar o óbvio, mas é assim: debaixo do bandeirão da Jovem não existe nem pobre nem rico, nem ladrão nem policial, nem homem nem mulher, nem negro nem branco, nem nada disso: debaixo dos gritos da torcida organizada estão todos irmanados sob o vermelho e o negro no qual Stendhal se inspirou para narrar a sua história de ascensão social. E é assim com todo futebol. É este o papel civilizacional que o esporte realiza: ele reúne os diferentes e os iguala, irmãos, sob uma mesma camisa.

O futebol, senhoras e senhores, não é um esporte identitário, e isso é óbvio. Nós não assistimos aos jogos para nos identificar, em nossas individualidades, com os jogadores que entram em campo. Os brancos vibraram com as jogadas de Edson Arantes do Nascimento, um negro; os abstêmios comemoraram os lances de Diego Armando Maradona, um conhecido cocainômano. O que torna Messi admirável pelos autistas e pelos não autistas é o seu futebol, e não o seu TEA. E as mulheres assistem, com gosto, com garra, com paixão, o futebol masculino muito mais do que o feminino. Futebol não tem nada a ver com desrespeito de classe, de sexo, de gênero; quem não entende isso não sabe o que é futebol e também não sabe o que é respeito. 

Mas o Sport não soube dar essa resposta firme, óbvia, quando ela foi exigida pela horda de bárbaros que pedia a cabeça do Flávio Koury. Ao contrário, preferiu gaguejar e ceder espaço, dessacralizando o futebol -- levantando bandeiras estranhas e cantando músicas profanas dentro de um templo sagrado onde as únicas bandeiras que podem ser hasteadas são aquelas que envergam as cores do time, e onde os únicos hinos que podem ser entoados são os gritos de guerra da torcida. Deu no que deu.

Foto: JC Imagem

Na final do Pernambucano, nos pênaltis, o VAR mandou o Náutico bater de novo um pênalti que Maílson havia defendido. Gol. Marquinhos era o próximo a bater. Indignado, o meio-campista deve ter pensado em todas essas coisas, na decadência do futebol, no rebaixamento de um esporte sério e milenar às categorias de "lacração" e de "cancelamento" dos bárbaros contemporâneos. Viu tudo isso em um átimo e chutou a bola pra fora, com força, com raiva, como uma catarse, e naquele pênalti perdido estava toda uma desforra contra uma situação artificialmente insuportável. Náutico campeão. Parabéns aos últimos vinte e quatro alvirrubros, que há mais de cinquenta anos não viam uma coisa assim acontecer. A torcida deles não sabia nem o que fazer.

Que o futuro nos torne de volta à razão e nos reserve dias mais luminosos. Que os verdadeiros amantes do futebol não permitam que um esporte tão venerável chegue ao fim dessa maneira. Que os próximos campeonatos sejam melhores.