segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Os moinhos de vento

Meus amigos, o jogo de ontem foi uma coisa tremenda. Aquele gol sofrido de pênalti, nos últimos minutos de jogo, lançou uma verdadeira ducha de água fria sobre a torcida rubro-negra. As pessoas veem com má vontade, como se fosse negligência do time ou desrespeito com o torcedor, ou como se a recente derrota, sofrida já no início do campeonato, tivesse algo de agoureiro e vaticinasse uma campanha vergonhosa. Que me perdoem os fatalistas, mas para mim é muito claro que o que acontece aqui é justamente o contrário.

A derrota para o Coxa não nos deveria desanimar, muito pelo contrário. O jogo de ontem, se bem compreendido, traz presságios verdadeiramente alvissareiros.

Primeiro que perder para o lanterna do campeonato não é um descuido do elenco atual do Sport, e sim mais um elo de uma longa e dolorosa tradição rubro-negra. Todo santo ano o Sport perde para o lanterna; na verdade, não me recordo de um ano sequer em que o fenômeno não se tenha repetido com a regularidade da revolução das órbitas planetárias. Já foi o Criciúma, o Atlético, o Ceará, até o ABC; este ano foi o Coritiba. Nisto é preciso dizer e sustentar, ao contrário dos fatalistas, que o time está, finalmente, reencontrando-se consigo próprio e reassumindo o protagonismo da sua história.

Segundo que aquela derrota não foi um massacre; foi, antes, uma fatalidade, destas vicissitudes da vida a que todos estamos sujeitos. Sim, meus amigos, aquela partida não foi uma carnificina; foi, antes, uma melancólica depressão. Um jogo decidido, de pênalti, aos quarenta e nove minutos da etapa complementar, não é nenhuma derrota fragorosa. Quase não chega a ser uma derrota. O resultado poderia ter sido qualquer outro, inclusive o oposto. Imagine-se um universo paralelo em que Sabino, em vez de sofrer aquele pênalti, houvesse quebrado as pernas de Hernane na entrada da pequena área. O jogo seria o mesmo, com a mesma performance dos atletas, os mesmos lances, tudo: apenas o placar final estaria invertido. E os vinte e um milhões de rubro-negros estariam satisfeitos. Por que, então, crucificar o time agora?

Foto: Globoesporte

Por fim, em terceiro e último lugar, porque o amargo deste revés tem o sabor de uma catarse. As pessoas dizem que os heróis nascem no glamour das vitórias; a verdade é que, antes disso, eles foram paridos em meio às dores das derrotas. Meus amigos, o Sport tem, hoje, uma oportunidade ímpar de dar a volta por cima; de sacudir do pelo majestoso a poeira da má fase e reassumir o protagonismo do futebol brasileiro a que faz jus.

Ora, não é uma derrota pontual o que sela o destino de um time. Ao contrário até: por vezes, as derrotas têm o condão de impulsionar para o alto. Dom Quixote não teria conquistado aventuras notáveis, que atravessaram os séculos!, se não tivesse começado as suas andanças com a assombrosa surra que levou dos gigantes -- que o seu arqui-inimigo, o mago Frestón, logo em seguida fez questão de transformar em moinhos de vento para o confundir. E com que perspicácia respondeu Cyrano de Bergerac, séculos depois, ao nobre que lhe lançava uma ameaça velada: "cuidado, que os moinhos derrubam ao chão quem investe contra eles". "É verdade", contrapôs o espadachim, "ou o lançam às estrelas!". 

E, naquela saída alucinada de Maílson para cima do zagueiro do Coxa, é impossível não ver Dom Quixote, airoso e desabrido, acometendo em furiosa carga contra os moinhos de La Mancha. Sim, meus amigos, não é uma queda: é um salto no espaço, rumo às alturas. Ao cavaleiro que hoje se encontra moído e quebrado no chão o porvir tem reservado as suas glórias e as suas coroas. Quem viver verá.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Vergonha da própria saúde

O coronavírus mudou os nossos hábitos. Não estávamos preparados para enfrentar uma quarentena e ainda assim ela nos foi imposta: mesmo despreparados, tivemos de a enfrentar. As pessoas estavam como loucas e a verdade é que poucos saberão dizer no futuro se se tratou de uma quarentena estendida (foram quatro meses!) ou se foi uma sequência matadora de pequenas quarentenas encadeadas. Não importa; de qualquer modo, foram dias estranhos que esmigalharam famílias, destruíram impérios e deixaram ruínas após si.

Pouco a pouco as coisas vão voltando, mas é como se as pessoas não soubessem bem como voltar. Há um sentimento de culpa generalizado. Na semana passada passei à porta de um restaurante. Antes as mesas costumavam estar apinhadas de gente jovem, conversando e bebendo e rindo animadamente; agora as mesas ocupadas por pessoas intercalam melancolicamente com as mesas ocupadas por cadeiras de pernas pra cima. E é deprimente porque há mais mesas sustentando cadeiras do que apoiando copos, pratos, talheres.

E é este o sentimento de culpa a que fiz referência acima. Ora, em tempos normais, as cadeiras colocadas em cima das mesas do bar exercem o mesmo papel social da vassoura posta atrás da porta da casa: umas e outra visam constranger visitantes impertinentes a irem embora. A mensagem que elas passam é universalmente clara: você não é bem-vindo, saia daqui, hashtag-vá-pra-casa. Mas isso, que em tempos normais sempre foi procedimento de fim de noite, hoje é a regra universal da sociedade. Os bares já abrem as portas com as cadeiras expulsando os fregueses que ainda nem chegaram. É como uma casa com uma vassoura permanentemente posta de ponta cabeça à parede da sala, a cuja vista as crianças crescem pensando que é isso o que significa ser um bom anfitrião.

A verdade é esta: o vírus deixou mais que uma pilha de corpos. Infectou-nos a alma, debilitou-nos os modos e evoluiu para óbito a nossa civilidade. Hoje nós sentimos culpa por sermos o que éramos. As pessoas têm vergonha de mostrar o próprio vigor físico; ter saúde é quase uma coisa obscena. Nas lojas, nos bares, nas praças, as pessoas estão desnorteadas -- querendo, precisando estar ali, mas sem saber como se portar. É como se estar saudável fosse ofensivo a quem está doente ou tem medo de adoecer.

E os efeitos devastadores da pandemia podem ser vistos também no futebol. Ontem foi domingo e tivemos, em ordem crescente de importância, dois grandes jogos: primeiro, a final da Champions League no Estádio da Luz; depois, Sport e São Paulo pela quinta rodada do Brasileirão na Ilha do Retiro. E em ambos os jogos vimos acontecer coisas surreais -- ou melhor, vimos não acontecer o que deveria ter acontecido, o que todos esperavam que acontecessem.

Foto: UOL

Duzentos e nove milhões de brasileiros esperaram o menino Neymar fazer um gol. Se fôssemos fazer uma pesquisa, veríamos que para a maioria deles não era nem uma questão de "se", mas de "quando". O gol de Neymar na final da Champions League era esperado não com a esperança romântica do casal de adolescentes à noite, na praia, perscrutando o céu escuro à busca de uma estrela cadente; não, aquele gol se esperava com a impaciência burocrática do trabalhador na estação esperando o metrô chegar para ir ao trabalho.

E, no entanto, para decepção dos namorados e mais horror ainda dos proletários, aquele gol não veio. Era um presságio. Já se via que a partida seguinte, a mais importante do domingo, também revelaria as suas incongruências. Foi dito e feito. 

A estrela Neymar não marcou um gol na final da Champions League e, em assombroso paralelismo, o ataque rubro-negro não furou um gol, um mísero gol, na defesa são-paulina. É o tributo pago aos tempos. Ainda sob os miasmas mal-dissipados da pestilência, as pessoas e os times estão com vergonha da própria saúde. É de pasmar. O mundo inteiro viu pela TV o choro do Menino Ney. Mas, embora o Leão tivesse sofrido um baque ainda maior, todos os vinte e um milhões de rubro-negros souberam sofrer com mais dignidade. É próprio dos sobreviventes saber que a pós-pandemia há de passar.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Os alquimistas e o monstro

Os antigos alquimistas consumiram as suas vidas tentando descobrir a pedra filosofal. Eram tempos de deslumbramento e de ganância, de grandes fracassos e de esperanças ainda maiores: quanto mais eles falhavam, mais acreditavam que a grande descoberta estava justo à frente, ao alcance da mão, e com mais afinco a buscavam. Foram grandes, não por seus êxitos, mas por sua determinação.

Hoje nós sabemos que aqueles homens jamais teriam conseguido transformar chumbo em ouro. O processo que eles almejavam estava além das possibilidades do universo físico. Os poderes daquela pedra, sabe-se hoje, somente seriam possíveis por algum meio sobrenatural. Coisa que, é bem sabido, não existe neste mundo.

Será que não existe? Passaram-se os séculos! E qualquer um pode dizer, agora, em 2018, com toda a franqueza: há algo de sobrenatural no Sport! A transformação sofrida pelo time nada deixa a desejar àquela buscada pelos medievais. Os alquimistas foram grandes; maior que eles é o Glorioso!

Porque, veja-se: logo após a Copa do Mundo, com o retorno do Brasileirão, o time passou por uma interminável série de derrotas. Perdeu pro Vozão, pro Florminense, pro Vitória, perdeu até mesmo para o Flamengo. Empatou com a Chapecó e, logo em seguida, apanhou do São Paulo, do Santos, do América e do Botafogo. Perdeu do Bahia, do Corinthians, dos Atléticos, do Palmeiras. Não era uma maré de azar, era um oceano inteiro de má sorte, uma conspiração cósmica. Nunca se viu um time apanhar tanto. Os dezessete milhões de rubro-negros chegaram quase a desaprender como se gritava "gol!". Parecia que a glória do Sport era o mesmo que o Hexa do Náutico. Foram três meses de alvirrubrice. Um pesadelo.

No entanto, quando tudo parecia perdido, quando já quase se jogava  a toalha, o time ressurgiu. Não de maneira tímida, mas como um monstro sedento de sangue. Agora, em assombrosa campanha de fim de carreira, o Sport, de repente, voltou a jogar. Atropelou em furibunda sequência o Inter, o Vasco, o Grêmio. E, ontem, para zombar dos matemáticos e confundir os analistas esportivos, despachou o Ceará e consolidou sua saída gloriosa da zona de rebaixamento. Quem o poderia dizer? Após tantos e tão retumbantes fracassos, eis, refulgente, a verdadeira pedra filosofal.

Todos acreditavam que o time já estava com o seu destino selado; qualquer um, olhando para o Leão maltratado, abatido, poderia jurar que ele nem tão cedo fosse conseguir se levantar. Talvez até não se levantasse nunca mais. Mas a tenacidade leonina é proverbial, é antológica e, digo mais, é ontológica: está nas próprias entranhas rubro-negras, está em alguma propriedade alquímica esquecida do traçado do vermelho e do negro: a fera nunca está morta e, quando parece que o time vai afundar como chumbo, ele se transmuda e passa a brilhar como ouro.

O time jazia no fundo do lago do rebaixamento e os seus algozes acreditavam tê-lo desta vez enfim derrotado. No entanto, para desespero deles, como se fosse sexta-feira, como em um filme de terror, a superfície das águas de repente começa a borbulhar. E, de repente, inacreditavelmente, o Leão se levanta, vivo, mortífero, sobrenatural, como Jason furioso que se recusa a morrer.



Sim, o Sport ontem emergiu da Z4 como Jason saindo do escuro do lago em uma noite de sexta-feira 13, sedento por mais uma temporada de matanças. Não era possível; mas, mesmo assim, é real. Quem quiser sobreviver que saia do seu caminho.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A maior vergonha

A natureza tem as suas exigências, seus códigos de conduta, seus rituais. As coisas têm cada qual o seu lugar e nos provoca estranheza quando vemos algo onde não deveria estar. A natureza é avessa a subversões. Acostumamo-nos com a hierarquia dela e aquilo que disso se afasta nos choca e incomoda.

Houve um escritor inglês que disse que os homens são tão superiores aos animais que um homem não se comporta jamais como um animal: ou lhe é superior, quando age racionalmente, ou inferior, quando, deixando de lado a inteligência, entrega-se aos instintos mais baixos. Igual, jamais.

E isso é bastante fácil de se ver. Ninguém faz nada quando um cachorro pega a comida do outro; no máximo se grita para o espantar. Mas não há nisso nada de excepcional. Ao contrário, se fosse um homem a se apropriar daquilo que pertence a outro homem, aí já chamaríamos de outra coisa -- de roubo ou de furto -- e já julgaríamos necessário mobilizar a polícia e os tribunais para identificar e punir o criminoso. E tal homem não poderia alegar em sua defesa não estar fazendo senão aquilo que qualquer vira-lata faz em nossas ruas. A maior prova da superioridade humana sobre o resto da criação reside no fato de os animais não serem sujeitos ativos do Direito Penal.

O superior não age jamais como o inferior: esta é a sua honra e a sua vergonha. Ora, há o Sport e há os outros times de Pernambuco, com uma diferença entre eles quase tão grande quanto a que existe entre o rei da França e um jumento baio. Um jumento que empaca não provoca comoção alguma; mas se Sua Majestade se pusesse de quatro a zurrar, tal feito entraria nos livros de história e jamais seria esquecido. Ora, mas não é a exata mesma coisa, alguém poderia perguntar? Não, não é, porque uma coisa é um jubaio e, outra, um nobre francês. Aquilo que o primeiro pode, não cabe ao segundo fazer igual.

Há o Glorioso Leão da Ilha e há a Tricobarbie, e da mesma forma que um rei não pode andar de quatro por aí o Sport não pode perder como o Náutico ou o Santa. Aquilo, que em um caso seria natural e esperado, é, para o Sport, uma humilhação inaudita. Que um timbu velho saia correndo quando alguém pisa mais forte no chão, nisso não há nada de mais. Agora, que um leão recue cabisbaixo perante o marchar dos ferroviários, isso é inadmissível, é vergonhoso e é notícia.

Ninguém se lembra de quantas vezes a cobrinha teve que voltar moída para o canal. Já o Sport entregar três gols em dez minutos e perder nos pênaltis, isso é o poste mijando no cachorro, é um acontecimento. A maior vergonha da noite de ontem não foi a eliminação da Copa do Brasil, que isso é besteira. O pior, o doloroso, o humilhante, foi ver o Glorioso sendo tratado como a minhoca, apanhando como o timbu.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A bandeira a meio mastro

O futebol não morre jamais. Dentro do gramado há coisas que provocam surpresa; algumas outras provocam raiva; e há também, por fim, aquelas que provocam, na falta de expressão melhor, desconforto.

Todas essas emoções afloraram no jogo de ontem, como se fossem brotos verdes furando a terra seca após a chegada da chuva, como espinhas inoportunas irrompendo de manhã nas faces rosadas da adolescente que tem um baile à noite. Porque ver o Sport começar perdendo é uma coisa surpreendente; vê-lo continuar perdendo ao longo de todo o jogo, quase deixando o Avaí aumentar a vitória!, é algo que provoca raiva no torcedor apaixonado; mas o ver, por fim, apático, exaurido após noventa minutos de partida, sem entusiasmo, sem brilho nos olhos, quase que sem vida, é uma coisa que provoca um profundo desconforto. E isso é muito pior.

Porque a surpresa e a raiva são emoções passageiras, próprias dos eventos inesperados: são as emoções que nos pegam de surpresa, contra as quais é até difícil se prevenir. Elas vêm junto com os acontecimentos que as provocam. É possível ao jovem enamorado surpreender-se ao ver aquela que é objeto dos seus deleites trocando carícias com um rapaz mais velho. É possível à mulher casada enraivecer-se ao ver o marido chegar em cada fedendo a bebida no dia do aniversário de casamento. Mas essas são coisas que vêm como o fulgor de um relâmpago e, como os relâmpagos, têm a inevitabilidade da natureza bruta.

Já o desconforto é diferente. Ele surge pouco a pouco, passo a passo, de maneira lenta e repetida; ele depende não de um acontecimento súbito, mas de uma impressão constante e maturada. Eis a verdade: a surpresa é filha do instante, enquanto o desconforto é neto do tempo. A surpresa convive bem com maus resultados aleatórios, com fatalidades, com acasos mais ou menos previsíveis. Já o desconforto só se decanta a partir da repetição demorada e diversificada de maus alvitres, de erros constantes, de fracassos reiterados.

Eis porque o jogo de ontem não provocou somente surpresa, nem apenas raiva, mas também e principalmente desconforto. Porque há algo de errado no mundo quando o Glorioso recorrentemente recusa-se a vencer, quando o Leão da Ilha do Retiro curva a cabeça por um lapso demasiado longo de tempo, quando o sagrado manto rubro-negro repousa na roupa suja ao invés de desfilar imponente nos peitos ufanos de dezoito milhões de torcedores. É a sensação de estranhamento provocada por uma sucessão fora do normal de dias nublados em pleno verão. É a atmosfera lúgubre de um filme de terror barato.

Ontem à tarde, antes do jogo, passei pela Agamenon Magalhães a tempo de contemplar a Ilha. A imensa bandeira do Sport tremeluzia sobre Recife; mas, estranhamente, ela estava a meio mastro. Parecia que a própria sede estava de luto antecipado pela derrota de mais tarde, pelo Leão de fronte caída oferecido ao sacrifício. Parecia um presságio funesto mas, antes, era um retrato do time tirado em um recorte de tempo já desconfortavelmente longo. A enorme bandeira contorcia-se furiosa, desafiava o vento e a gravidade enquanto se enlutava pelo Glorioso. E da nobreza daquela cena poucos clubes teriam sido capazes mesmo em suas melhores fases. Sob o sol daquela tarde de domingo, até mesmo aquele luto era majestoso.

domingo, 18 de junho de 2017

Ninguém parece esperar mais nada

Foi com um misto de temor e apatia que a torcida rubro-negra compareceu à Ilha do Retiro, na noite deste domingo, para ver o Sport jogar. A partida não se afastou muito dos ânimos com os quais os rubro-negros foram ao estádio: apresentando um futebol apático e decadente, cadavérico até, o Sport não pôde fazer frente ao visitante baiano e amargou a sua quarta derrota no Campeonato Brasileiro de 2017.

Eis o que aconteceu: a torcida não estava confiando no time e, em contrapartida, em retribuição, o time mais uma vez não jogou a ponto de encher os olhos da torcida. Não é nem mesmo possível dizer que o elenco tenha decepcionado os torcedores: afinal de contas, para que haja uma decepção é preciso que existam expectativas sinceras que venham a ser frustradas. Uma pessoa na qual ninguém confia não decepciona ninguém. E o time rubro-negro, verdade seja dita, perdeu a confiança dos seus torcedores.

Foto: Globoesporte
Mas por que essa tragédia? Dezoito milhões de rubro-negros sem confiar no Glorioso? Toda uma multidão de torcedores do Sport enchendo a Ilha do Retiro sem verdadeira expectativa de que o time jogasse com garra -- jogasse com determinação e coragem, lançando-se sobre o inimigo com o furor de um náufrago, estraçalhando o adversário com o desespero de um soldado aliado no desembarque da Normandia? Nada disso aconteceu e por outra: nada disso poderia jamais acontecer porque ninguém esperava que nada disso acontecesse. É a maior tragédia destes dias: ninguém parece esperar mais nada.

Em outros tempos não era sequer necessário sair para ver o time jogar: eram as vitórias rubro-negras que, heróicas, épicas, epopéicas, vinham bater à nossa porta e desfilar garbosamente diante de nossos olhos. Eis a verdade: ontem não era sequer necessário sair para ver o Sport ganhar porque as vitórias do time estampavam as capas dos jornais, ocupavam o horário mais nobre dos telejornais esportivos e monopolizavam as conversas nas mesas de bar. Elas vinham até nós com uma obscena naturalidade, enchendo de alegria a nação rubro-negra e envergonhando os nossos adversários que delas não conseguiam fugir.

Hoje não. Hoje o time anda apático e atarantado, sem se encontrar em campo, sem honrar o escudo estampado na camisa e sem fazer valer o sagrado manto rubro-negro do qual é herdeiro e portador. Por quê? A torcida não o sabe e, pior!, sai culpando a todos, atirando para todos os lados, no instinto desesperado de quem precisa abater um inimigo que não sabe exatamente onde se encontra. É o treinador. É o volante. É a escalação. A formação do time. A diretoria. O gramado. O calendário dos jogos. É tudo e, justamente por conta disso, acaba não sendo nada: as variáveis mudam uma a uma e o resultado final permanece inalterado. Onde está a glória rubra-negra, aquela que já foi cantada em prosa e em verso, diante da qual a torcida já tantas vezes se emocionou, os homens vibraram vitoriosos e, as mulheres, suspiraram enlevadas? Onde está?

Esta é a pergunta mais importante a ser feita neste momento. O time precisa encontrar-se com o seu passado, reconciliar-se com a sua majestade e, tranquilo, sereno, simplesmente ser aquilo que é: o Glorioso, o destemido Leão da Ilha do Retiro, cujas garras destroçam os adversários como se fossem ripas velhas de madeira e cujo rugido faz desmoronarem as formações técnicas dos times contra os quais entra em campo. Aquele elenco precisa tomar consciência daquilo que ele é: o Sport Club do Recife, glória desportiva de Pernambuco, orgulho de milhões de rubro-negros e flagelo dos que cruzam o seu caminho.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Nunca se viu um silêncio tão pesado

Existem duas atitudes instintivas que um homem pode tomar diante do perigo. Digamos, um homem se afogando. Ele pode se angustiar, se debater, se apavorar -- e com isso começar a engolir cada vez mais água e apressar, assim o próprio fim. Ou, por outro lado, este homem pode manter a calma, respirar fundo, limpar a mente e concentrar-se nas braçadas que precisa dar para chegar a terra firme. São duas atitudes fundamentais e opostas entre si: uma conduz à morte enquanto a outra leva à sobrevivência.

Aquele que mantém a calma diante do perigo é o verdadeiro sobrevivente: e foi assim que o Sport se portou nas semi-finais da Copa da Nordeste. Perdera para o Santa Cruz na Ilha do Retiro no jogo de ida; na volta, jogando no campo do adversário, precisava vencer a qualquer custo para continuar na competição.

Alguém poderia dizer que o time não precisava disputar esta final; afinal, os rubro-negros estão jogando não dois nem três, mas cinco campeonatos ao mesmo tempo. O Glorioso é finalista no Campeonato Pernambucano e na Copa do Nordeste. Está nas Oitavas da Copa do Brasil. Está, também, disputando a Sulamericana. E, é claro, ainda tem a série A do Brasileirão que começa ainda está mês. São muitas competições simultâneas, mas para o Rei dos Gramados não existe tempo ruim. O Sport é como o Leão cercado de caça farta, qualquer uma delas ao alcance de suas garras poderosas.

Poderiam dizer que o Sport não precisava se desgastar com esta final; mas ele se confrontou justamente com a minhoca do canal do Arruda. A minhoca que veio rastejante da série D do Brasileirão e parece já ter iniciado o seu caminho de volta, ladeira cada vez mais abaixo. A minhoca que, cega e patética, ousou passar os últimos dias debochando do Sport. Aí não.

Foto: Guga Matos/JC Imagem.

Aí não, porque os grandes times têm um nome a zelar. O sagrado manto rubro-negro não poderia ficar assim exposto ao escárnio das tricobarbies. O escudo glorioso do Sport não poderia se sujeitar inerte às patas imundas dos vira-latas de três cores: toda a situação clamava por uma reparação.

E ela veio na noite de ontem no Arruda: o Sport impondo terror ao seu adversário, o silêncio sepulcral tomando conta das ruas ao redor, do bairro, de tudo. Nunca se viu um silêncio tão pesado, mas tão pesado que podia até ser visto e ouvido. Quem o ouviu disse que ele era ensurdecedor; quem o viu, garante que ele era preto, branco e vermelho. O silêncio dos deixados para trás.

A minhoca olhou um dia o seu reflexo nas águas sujas do canal e achou que era uma cascavel venenosa. Quis, por conta disso, crescer para cima do Leão: que desastre! Se o time pudesse hoje voltar atrás aposto que não teria se animado tanto. Não teria debochado assim do seu algoz. Mais até: se visse antecipadamente a heróica vitória do Sport ontem à noite talvez o Santa Cruz não tivesse nem coragem de entrar em campo para o primeiro jogo. Teria preferido enfiar-se na lama e entregar de bandeja a vaga na final a quem de direito -- tudo para não ter que sofrer a humilhação de hoje.

Há times que mantêm a calma diante do perigo, e estes são os vencedores. Mas há os desesperados, há os que não sabem o que fazer, os que se zangam e começam a espumar. Este é o Santa Cruz. Perdendo ontem em casa, abrindo passagem -- no próprio campo! -- para o desfile triunfal dos rubro-negros, o Santinha se desesperou. Incapaz de mostrar melhor futebol que seu adversário partiu para cima dele com os punhos e as chuteiras, com socos e empurrões, chutes e voadoras. O jogo teve que ser suspenso por diversas vezes; no final, três jogadores do time de casa haviam sido expulsos. Foram os últimos espasmos dos afogados, buscando em seus estertores arrastar para o fundo quem quer que estivesse por perto. O Sport soube se desvencilhar e seguir adiante. E, enquanto a minhoca jaz afundada, o Leão ocupa o lugar que lhe pertence por direito.